Pensata

Marcio Aith

28/10/2002

Como os EUA mudaram sua estratégia para receber o PT

Durante mais da metade da década de 90, os EUA viram o PT e o presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, como inimigos radicais dos interesses americanos no país e na região. A comunicação entre o governo americano e sua embaixada em Brasília, repleta de telegramas exaltados, comprova esse fato - que deve ser sempre lembrado, em nome da preservação da história. O tratamento dado a Lula pelos EUA durante as três eleições presidenciais nas quais perdeu (1989, 1994 e 1998) foi lastimável. Os americanos interferiram nesses processos por meio de críticas públicas ao candidato, do cancelamento de encontros oficiais durante viagens do petista aos EUA e de declarações que elevaram o pânico dos mercados.

No entanto, o governo americano portou-se muito bem durante as eleições vencidas ontem por Lula, assunto que já tratei em coluna anterior. Poucos analisaram a fundo o motivo dessa mudança. Para receber o PT, a burocracia do Departamento de Estado dos EUA mudou, antes mesmo de 2002. Mudou nas eleições municipais de 2000, sem que tivéssemos percebido.
Depois de um pequeno trabalho de prospecção em Washington, pude identificar alguns agentes dessa mudança. Um deles, talvez o principal, não trabalha mais para o governo americano. O nome dele é Anthony Harrington, advogado e ex-embaixador dos EUA no Brasil entre 1999 e 2001. Hoje, Harrington dirige uma empresa de consultoria internacional e tem como sócio Sandy Berger, ex-assessor de segurança nacional da Casa Branca durante o governo do ex-presidente Bill Clinton.

Nomeado embaixador em 1999, Harrington viajou a Brasília sem saber direito o que encontraria. Na época, foi severamente analisado por vários jornalistas (entre eles o autor dessa coluna) por suas ligações com empresas do setor de telecomunicações. Uma vez no Brasil, Harrington viajou como poucos e apaixonou-se pelo país. Além disso, munido de um faro especial, ajudou a mudar a imagem do PT dentro do Departamento de Estado, preparando os EUA para entender o significado de uma possível eleição de Lula.

Harrington estava em Brasília durante as eleições municipais de 2000 e ficou impressionado com o resultado: os partidos de esquerda, particularmente o PT, haviam crescido muito. O número de prefeitos eleitos pela sigla subiu de 111 em 1996 para 187 em 2000 e seu contingente eleitoral cresceu 51% no primeiro turno da votação para prefeitos dos municípios brasileiros. O desempenho ocorreu sobretudo nas grandes e médias cidades, entre as quais o PT elegeu o prefeito de seis capitais, contra duas na eleição anterior, e de 17 das 60 maiores cidades do país. Em suma: "o inimigo" estava vencendo, pela via democrática, e os EUA não só desconheciam o motivo como também não estavam preparados para lidar com sua vitória.

Desde então, a linha do governo americano começou a mudar. Os EUA continuavam discordando das propostas centrais do PT, mas concluíram que seria necessário entender o partido, reconhecer publicamente sua importância e levar seu líder a sério.

No sábado passado, telefonei a Harrington para falar sobre o assunto. O ex-embaixador disse que a posição americana mudou gradualmente e admite ter participado de parte desse processo. "Quando eu estava em Brasília, acompanhei as eleições municipais e tentei entender o significado daquele voto. Conversei com prefeitos e governadores. Acompanhei as gestões do PT de perto. Falei com todos, antes e depois das eleições. Me diziam que foi um voto pela competência, contra a corrupção. Não dá para ser se opor a isso, por mais que se tenha diferenças com um partido.

Tentei reportar a posição a Washington. Conversando com líderes empresariais, também percebia que nem todos estavam preocupados com uma possível eleição de Lula em 2002. Quanto mais o conheciam, menos medo tinham dele. Conversei na época com José Dirceu e voltei a conversar com ele aqui em Washington, alguns meses atrás. Além disso, desenvolvi uma relação de amizade com Sarney (senador e ex-presidente José Sarney), que sempre elogiou Lula. Havia algo no PT que nós não conhecíamos integralmente."

Desde então, os EUA passaram a ver Lula de forma diferente e isso acabaria sendo vital para que os americanos o recebessem de forma isenta. Essa transformação tem uma enorme importância. George W. Bush elegeu-se presidente americano em 2000 com uma visão de mundo radicalmente oposta à do PT. Se dependesse de Bush e de seus assessores mais próximos, Lula, Chávez e Fidel seriam a mesma pessoa. Mas eles não formulam a política dos EUA para o Brasil. Quem a cria são diplomatas, por meio de telegramas que eles enviam de Brasília a Washington. Embora errem muito, de vez em quando acertam na estratégia.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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