Pensata

Marcio Aith

04/11/2002

O debate maníaco-depressivo sobre o superávit primário de 2003

Um dos aspectos mais preocupantes da crise econômica argentina foi o descolamento entre a opinião pública interna e a avaliação que a comunidade internacional fazia das finanças do país. Os argentinos tinham certeza de que o regime de convertibilidade era eterno enquanto o mundo percebia que aquilo iria explodir rapidamente. Duas linguagens totalmente diferentes brotaram, uma dentro do país (repleta de otimismo, fabricado por meios de comunicação falidos) e outra fora (pessimista, estimulada por especulação e irracionalidade). Uma não falava com a outra.

Felizmente, a economia brasileira e a dinâmica de nossa turbulência têm muito pouca relação com aquela que destruiu nosso vizinho. Estamos numa situação muito melhor. Mas isso não quer dizer que haja sintonia entre o que pensamos e o que avaliam acadêmicos, banqueiros e observadores internacionais. Aliás, há cada vez mais divergência, dentro e fora do país, com relação a um ponto essencial: o esforço fiscal que deve ser feito em 2003.

Os dois governos brasileiros (o que sai e o que entra) acham que ele deve ficar nos 3,75% do PIB. A opinião está baseada no seguinte raciocínio: o câmbio tem melhorado, o aumento das exportações produziu em setembro o maior saldo positivo em conta corrente da história e o risco-país tem caído. Portanto, a tendência natural é a de equilíbrio da relação dívida-PIB sem que seja necessário um aumento do superávit primário.

Em Washington e Nova York, trabalha-se com outra lógica. O FMI e Wall Street acreditam que o Brasil deve caminhar para superávits que sejam suficientes para pagar as despesas com os juros da dívida, não apenas as contas primárias. O Brasil, dizem eles, não pode equiparar-se sempre a um aluno de colégio que, embora não consiga fazer toda a lição de casa, é aplaudido e elogiado pelo esforço insuficiente que fez. Segundo eles, esse tipo de aplauso só vale se o aluno, depois de um tempo, conseguir dar conta do recado.

Segundo o FMI, há países na economia global que obtiveram superávites além dos imagináveis e podem servir de exemplo para o Brasil. A Turquia saiu de um déficit primário de 2% para um superávit de 6,5% em dois anos. A Jamaica também obteve um superávit primário surpreendente, de mais de 11% do PIB.

No mês passado, o agora vice-presidente do Citigroup, Stanley Fischer, comentou que, ao receber os ministros da Turquia e da Jamaica quando trabalhava no FMI, alertou-os para o grave problema de suas dívidas. 'Eles responderam que as pagariam. Eu então disse que o esforço fiscal necessário seria politicamente inviável. Eles disseram: 'É politicamente viável e nós vamos provar para você.' E provaram. É muito difícil julgar, de fora, esse tipo de decisão. Se perguntarmos aos turcos e aos jamaicanos, eles dirão que fizeram a coisa certa.'

A posição de Fischer - a mesma da atual equipe do FMI - é muito controversa. Está claro que, ao exigir ajustes fiscais e arrochos monetários para mostrar que um governo pode pagar sua dívida, o FMI acaba destruindo as receitas públicas e elevando a pressão sobre despesas. Mas também não faz sentido expandir o crédito de forma descontrolada somente para estimular a atividade econômica.

É natural que existam duas maneiras de olhar para um mesmo problema. O preocupante é quando as duas passam a não se cruzar, como se estivessem mirando dois países diferentes.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

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