Pensata

Marcio Aith

18/11/2002

Dúvidas no debate sobre a fome

Segundo o relator das Nações Unidas para a Alimentação, Jean Ziegler, 56 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Para o PT, são 46 milhões. Para o presidente Fernando Henrique Cardoso, são 22 milhões.

Esses números ganharam importância depois que Lula elegeu o combate à fome como prioridade de sua administração. Ao fazê-lo, Lula iluminou um tópico sobre o qual (descobrimos agora) fala-se muito e sabe-se pouco. Quantas pessoas passam fome no Brasil? Quem mede a fome de forma estatística? Com que metodologia? Todos os pobres são incluídos na lista dos que têm fome ou só as parcelas mais pobres dos pobres?

Se Lula estiver superdimensionando a fome _ como sustenta o presidente FHC_, como fará para agradar uma maioria esmagadora da população (pobres incluídos) cujas prioridades são outras? Se for esse o cenário, não seria mais adequado identificar o programa Fome Zero apenas como uma de muitas prioridades da futura administração, em vez de elegê-lo prioridade máxima? Não seria melhor falar de emprego?

Se Lula estiver certo, qual será sua estratégia para convencer a classe média empobrecida (mas não faminta) que, para ela, também é essencial erradicar a fome? Eu não estive no Brasil durante a campanha. Não senti o clima. Tenho curiosidade, no entanto, para saber a expectativa exata dos eleitores de Lula que não passam fome. O voto em Lula foi o voto contra a Fome ou foram vários votos _ algo como "cada-eleitor-espera-uma-coisa-diferente"? Se, ao final de seu governo, a fome estiver erradicada mas a crise econômica e o desemprego forem os mesmos, como reagirá a maioria da população?

Percebi a importância de algumas dessas questões ao conhecer o programa de alimentação nos EUA e testemunhar as crises políticas na Venezuela. A relevância da experiência venezuela não está na comparação infantil entre Lula e Chávez, mas sim nas semelhanças entre as classes médias dos dois países.

Chávez foi inicialmente eleito com o apoio da classe média. Hoje, no entanto, essa mesma fatia da população (que perdeu dinheiro, mas não o discurso) diz ser insuficiente governar para pobres. Fome, diz ela, é problema de país pobre. O importante, para essa fatia da população, é colocar Botox e fazer compras em Miami e Nova York. Ela conspira diariamente contra Chávez.

Com relação à experiência americana, posso dizer que programas contra a fome no Brasil - independentemente dos milhões exatos de famintos que existem no país - são necessários e teriam um efeito positivo para a adoção de um verdadeiro capitalismo no país. Hoje, são os setores comercial e agrícola americanos (e não os famintos) quem mais pressionam o governo para manter a distribuição dos cupons de alimentação no país.

Há décadas, os EUA têm programas de combate à fome e à desnutrição. O de refeição nas escolas públicas é considerado o mais antigo dos que estão em operação. Foi criado em 1946, depois da Segunda Guerra Mundial, quando os americanos chocaram-se com o enorme número de jovens excluídos do serviço militar por problemas relacionados a deficiências nutricionais.

Já o programa de cupom alimentação ("Food Stamp Program") começou como um pequeno projeto-piloto no início da década de 1960 - embora seu nome tenha sido tirado da distribuição de cupons durante a Grande Depressão.

Com a eleição de John Kennedy, o Food Stamp começou a expandir-se. Em 1970, tornou-se nacional e permanente. Os cupons são vales que podem ser trocados por alimentos em lojas de varejo autorizadas. Reagan conseguiu restringir seu alcance violentamente, assim como o próprio presidente Clinton, em 1996, quando os imigrantes (mesmo os legais) foram excluídos da lista de beneficiários. O atual presidente também quer restringi-lo, elevando o número de horas mínimas que uma pessoa deve trabalhar para receber o benefício.

As pessoas normalmente associam o programa de Food Stamp à Grande Depressão porque o governo Roosevelt distribuiu cupons para garantir a compra de alimentos pelos pobres e, ao mesmo tempo, elevar a renda dos agricultores. Mas esse programa, abolido no começo da segunda guerra, não funcionava como uma complementação de renda, mas sim como um instrumento para levar os excedentes agrícolas para os famintos.

Experimentava-se na época o "paradoxo da necessidade em meio a abundância", nas palavras de Janet Poppendieck, uma das maiores especialistas dos EUA sobre fome. Gary Bickel, economista aposentado do Departamento de Agricultura dos EUA, e Margaret Andrews, diretora de pesquisa do Food Stamp no mesmo departamento, escreveram um ótimo artigo sobre o tema no livro "Combate à Fome e à Pobreza Rural", organizado, entre outras pessoas, pelo coordenador do Fome Zero de Lula, José Graziano da Silva.

No início da Grande Depressão, o governo americano acumulava excedentes agrícolas enquanto produtores rurais matavam gado e queimavam alimentos para garantir o preço. Tornou-se urgente para o governo americano um mecanismo que agradasse simultaneamente os produtores e alimentasse a produção. O atual programa dos americanos é diferente. Visa complementar a renda.
Marcio Aith é correspondente da Folha em Washington. Escreve para a Folha Online às segundas

E-mail: maith@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca