Pensata

Vaguinaldo Marinheiro

05/08/2001

O nascer de um revolucionário

Nesta época de retomada das manifestações de rua e da morte de um jovem antiglobalização pela polícia, vale a pena acompanhar o nascimento de um revolucionário à moda antiga, do tipo bem mais focado. É isso o que permite o livro "De Moto Pela América do Sul, Ernesto Che Guevara, Diário de Viagem", recém-lançado pela Sá Editora.

O livro traz os relatos de viagem do próprio Che, numa jornada que fez com o amigo Alberto Granado pela América do Sul em 1952. Ele era apenas um jovem estudante de medicina, de 23 anos, entediado com a vida classe-média argentina, que queria partir em busca de aventuras.

Mas, em meio a relatos de fugas de maridos ciumentos, tombos de moto, jogos de futebol ou ataques de asma, já é possível perceber elementos que o transformariam no revolucionário que se uniu a Fidel Castro no México para depois seguir para Cuba, tomar Havana e construir um dos últimos governos comunistas ainda de pé.

Nesses momentos aparece um Che antiglobalizante (apesar de o termo nem ser usado naquela época), anticapitalista e desejoso de uma América do Sul unida. E, passados quase 50 anos, seus comentários parecem ainda fazer muito sentido.

A formação do "camarada" Che fica clara logo na primeira metade do livro, quando por exemplo ele critica duramente um início de globalização ao lamentar as condições insalubres de trabalhadores explorados pelas companhias norte-americanas nas minas de cobre do Chile.

E fica ainda mais explicito quando ele conta a visita que fez a uma senhora asmática e com o coração fraco no mesmo Chile. Aí seu diário assume tons de discurso: "É em casos como esses, quando um médico percebe que não pode fazer nada, que ele deseja a mudança; uma mudança que impedisse a injustiça de um sistema no qual até um mês atrás essa pobre mulher tinha de ganhar seu sustento trabalhando como uma garçonete, respirando com dificuldade, ofegando, mas encarando a vida com dignidade. Nestas circunstâncias, as pessoas de famílias pobres que não podem se sustentar são rodeadas por uma atmosfera de aspereza mal disfarçada; deixam de ser pais, mães, irmã ou irmão, para tornar-se apenas um fator negativo na luta pela sobrevivência e, por extensão, fonte de amarguras para os membros sadios da comunidade, que se ressentem de sua doença como se fosse um insulto pessoal contra aqueles que têm de apoiá-los. É aí, no final, para as pessoas cujos horizontes nunca ultrapassam o dia de amanhã, que nós percebemos a profunda tragédia que circunscreve a vida do proletariado em todo o mundo. Nesses olhos moribundos existe um humilde apelo por perdão e também, muitas vezes, um pedido desesperado de consolação que se perde no vácuo, da mesma maneira como seu corpo desaparecerá logo em meio ao vasto mistério que o cerca. Quanto tempo mais essa ordem atual, baseada na idéia absurda de classes sociais, vai durar eu não sei, mas é chegada a hora em que o governo gaste menos tempo propagandeando suas próprias virtudes e comece a gastar mais dinheiro, muito mais dinheiro, financiando projetos úteis para a sociedade."

Não parece um panfleto de um partido de esquerda de hoje?

Por fim, ao comemorar seu aniversário de 24 anos, em junho de 1952, faz um discurso para médicos e doentes de uma colônia de leprosos no Peru conclamando o pan-americanismo: "Nós acreditamos (...) que a divisão da América em nações instáveis e ilusórias é uma completa ficção. Somos uma raça mestiça com incontáveis similaridades etnográficas, desde o México até o Estreito de Magalhães."

A atualidade dos comentários de Che Guevara suscita uma pergunta: o que estaria fazendo esse argentino egresso da classe média alta hoje se não tivesse sido morto em 1967? Estaria rivalizando com o francês José Bové para saber quem é a estrela antiglobalizante do planeta? Estaria como seu companheiro de viagem, Granato, como um médico respeitável em Cuba? Ou teria se desiludido com a situação atual de Cuba, rompido com Fidel e se transformado em mais um crítico do comunismo?

Nunca saberemos. Mas o certo é que sua preocupação com as condições de vida da maioria dos sul-americanos, demostrada neste livro, garante que ele não entraria nesse oba-oba sem rumo das manifestações de hoje, quando muitos autoproclamados revolucionários não têm idéia por que estão lutando. Esses que invadem lanchonetes ou protestam pela proibição de transgênicos apenas para aparecer nas TVs.

SERVIÇO: "De Moto Pela América do Sul, Ernesto Che Guevara, Diário de Viagem"; 190 páginas; Sá Editora; R$ 29,90.
Vaguinaldo Marinheiro é secretário-assistente de Redação da Folha de S.Paulo. Escreve para a Folha Online aos domingos

E-mail: vaguinaldo.marinheiro@folha.com.br

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