Pensata

Vaguinaldo Marinheiro

07/10/2001

Pelo menos alguns mundos acabaram

Quando os aviões atingiram as torres do World Trade Center e o Pentágono, em 11 de setembro, muita gente julgou que estávamos no início da terceira guerra mundial e que o mundo poderia enfim acabar.

Passado quase um mês, o mundo parece ainda existir. Mas alguns mundos acabaram.

Primeiro acabou aquele onde as pessoas acreditavam que o perigo estava lá longe, não ao lado de casa. Poderia estar no Oriente Médio, numa discoteca ou lanchonete entre uma sinagoga e uma mesquita, mas nunca no território americano, na terra da liberdade e da potência absoluta.

Agora, e por algum tempo, tudo será motivo para medo e para desconfiança. Se um louco resolve atacar um motorista de ônibus e causa a morte de seis pessoas, isso pode ser mais um ataque terrorista. O fato de ele ser estrangeiro e falar inglês com sotaque só aumenta o pânico.

Se um avião lotado de judeus cai no mar Negro, tudo indica que foi obra do terror, como se aviões não caíssem antes, por problemas técnicos ou imperícia dos pilotos.

Acabou também o mundo da mal disfarçada tolerância com alguns estrangeiros, principalmente nos Estados Unidos. Agora, todo aquele que usar turbante, ou simplesmente tiver a pele escura, cabelos negros e barba será um suspeito em potencial.

Pessoas já foram espancadas nos Estados Unidos por causa de sua crença religiosa ou nacionalidade. Crianças muçulmanas ficam trancadas em escolas no Canadá e um indiano teve de sair de um avião por usar turbante e "parecer perigoso".

Os muçulmanos (erroneamente confundidos automaticamente com fundamentalistas e terroristas) viraram no início do século 21 o que foram os japoneses para os americanos na 2° Guerra Mundial, com o agravante de os novos inimigos parecerem muito mais perigosos.

Por fim, acabou o mundo do respeito à divergência de idéias. Qualquer um que deixe um pouco de lado o luto pelos quase 6.000 mortos e tente discutir que o ataque aos Estados Unidos pode ter sido uma resposta (ainda que desproporcional e criminosa) à política externa do país ou à exportação do estilo de vida americano para o mundo é acusado de cabeça oca esquerdista e pró-terrorismo.

Susan Sontag foi uma das que tentaram fugir do luto. Acabou sendo massacrada pela imprensa e pela "intelligentsia" do país. Numa entrevista concedida na semana passada, ela desabafou: "Sou uma antiga crente da liberdade de expressão, da diversidade, do debate. E esses valores americanos estão literalmente sob ataque porque o país se definiu como estando em guerra. E, numa guerra, você tem que desistir da sua liberdade."

É preciso ressaltar que os ataques a civis nos Estados Unidos são injustificáveis, covardes e crimes que precisam ser punidos. Mas o estado permanente do medo e a perseguição àqueles que seguem religiões ou defendem pontos de vista diferentes dos adotados pela maioria no ocidente não são próprios da democracia e do mundo livre, conceitos que os Estados Unidos juram defender. São próprios dos fundamentalistas islâmicos, justamente esses que agora são chamados de inimigos.
Vaguinaldo Marinheiro é secretário-assistente de Redação da Folha de S.Paulo. Escreve para a Folha Online aos domingos

E-mail: vaguinaldo.marinheiro@folha.com.br

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