Pensata

Eliane Cantanhêde

19/11/2003

Pensata a dois

Com licença, mas vou usar o espaço desta Pensata para uma entrevista com o professor Marco Aurélio Garcia, gaúcho, 62 anos, que foi o homem do PT para assuntos internacionais durante dez anos (até 2000) e é atualmente o assessor internacional do presidente Lula. Ele, portanto, que entende tudo da política externa do atual governo. Ei-la:

Por que a aproximação com a África é importante?
Garcia
- Desde muito antes das eleições, nós, do PT, já definíamos a África como prioritária na nossa política externa. É importante dizer que, naquela ocasião, muitos até faziam chacota. Diziam: 'Ah! Querem ir para o Quarto Mundo. Qual a importância da África?' No fundo, aquelas pessoas compraram a tese de que a África iria desaparecer. Mas a África não vai desaparecer. É um continente de muita importância, com muitas riquezas. Ela sofreu os efeitos imediatos e diferidos do colonialismo, especialmente estes, que abalaram profundamente o continente todo.

Também sofre a pandemia da Aids, uma coisa terrível, mas ela vem experimentando um processo forte de renascimento, que nós vínhamos prevendo havia muitos anos. Nós percebemos é que um dos eixos da nossa política deveriam ser: a África do Sul, pelo papel irradiador que ela tem no continente, seja do ponto de vista econômico e político, depois da extraordinária experiência de superar o apartheid, e a África portuguesa, que tem enorme identidade conosco. Mais do que isso, o Brasil teve um processo de intervenção nesses países durante os processos de descolonização. Tanto Angola quanto Moçambique e Guiné Bissau, na verdade quase todos os países de língua portuguesa tiveram apoio muito forte do governo brasileiro na época do chamado pragmatismo responsável.

Como o sr. mesmo falou, há duas Áfricas, uma desenvolvida, como a África do Sul, e outra pobre, a portuguesa. Neste caso, a ação brasileira não tem de ser necessariamente assistencialista?
Garcia
- Não, não acho. Acho que é uma política que contempla certos elementos de cooperação pelo fato de que esses países estão profundamente deprimidos economicamente por causa das guerras. Mas estamos aqui também procurando estimular a cooperação técnica, os investimentos industriais, as relações comerciais. Estamos vivamente interessados na exploração das riquezas naturais que esses países têm. Angola, por exemplo, é um país riquíssimo em petróleo e diamantes. São Tomé tem potencial petrolífero muito grande.

Essa ação, de toda forma, não tem um caráter hegemonista que começa na América do Sul?
Garcia
- Não acho que sejam ações assistencialistas e menos ainda hegemonistas. Nós nunca seremos hegemonistas, até porque a problemática dos países africanos é tão específica que, mesmo que o Brasil quisesse ter uma posição, digamos, neocolonialista, isso não resistiria. Eles viveram uma experiência terrível nessa direção, e todos esses países que visitamos, sobretudo, são países que mantêm governos e lideranças que se formaram ainda na luta anti-colonial. Então, eles não transigirão de maneira nenhuma. Agora, nós também não podemos ficar cegos diante da epidemia da Aids, de uma situação de miséria, do analfabetismo. Até porque nós também temos. Em alguns casos, temos num nível muito próximo ao deles.

Como o Brasil pode falar em ajudar a África, se alega não ter recursos nem para resolver suas próprias misérias?
Garcia
- O Brasil não pode se impor mundialmente como potência militar e nem gostaríamos de ter esse papel. Nós também levaremos um certo tempo para nos transformar numa potência econômica. Então, o Brasil pode ter no mundo é uma presença política e moral. Essa presença se dá na medida em que o país possa abraçar as lutas pelas grandes causas da humanidade. A luta pelos direitos humanos, contra a miséria e a pobreza. São problemas que, evidentemente, nós enfrentamos. Mas são problemas também que outros países enfrentam. Nós queremos compartilhar soluções.

Não era esse o discurso dos EUA nas décadas passadas? Além das forças militar e econômica, também a força assistencialista como instrumento de dominação?
Garcia
- Não sei se foi o discurso dos EUA nos anos 50 e 60, mas a prática eu sei que não foi.

No caso dos EUA em relação, a ação assistencialista era uma espécie de confeito do bolo. E no nosso caso, agora, quando o governo Lula fala em "liderança" e em "diplomacia ativa"?
Garcia
- A Aliança para o Progresso, dos EUA, era uma política que, sim, tinha um componente social. Por quê? Porque ela queria dar uma resposta à revolução cubana. Em 1959, 1960, a revolução cubana como que abriu as entranhas da América Latina, mostrando os grandes problemas sociais e indicando um outro caminho, que não era aquele que agradaria aos EUA naquele momento. Então, enquanto os EUA reforçavam a sua presença militar com suas tropas anti-guerrilhas, desenvolviam um ambicioso projeto assistencialista que era a Aliança para o Progresso.

A promessa brasileira de levar tecnologia, ciência e progresso para os países pobres, inclusive da África...
Garcia
- ...até porque não temos dinheiro para isso. Nós nos dispomos a uma ajuda menor, que vinha sendo dada no passado e que nós queremos retomar e intensificar. Achamos que houve uma descontinuidade em relação à política africana. O Brasil, de certa forma, esqueceu da política africana.

Que, aliás, foi particularmente intensa durante o regime militar, no governo Geisel.
Garcia
- É, na década de 1970. Mas por outras razões. O governo Geisel naquele momento tinha uma percepção da situação internacional muito particular. Ele se enfrentou com os EUA, denunciou o acordo militar Brasil-EUA e passou pela crise do petróleo. Ele teve, então, de fazer uma inflexão do tipo terceiromundista, rumo aos países africanos e aos países árabes que tinham potencial petrolífero. Enfim, ele assumiu o terceiromundismo muito mais por pragmatismo do que por ideologia.

Em realidade, a política do pragmatismo responsável, em grande medida e em substância, é a política externa independente que a esquerda defendia na década de 60. E que teve formuladores no Itamaraty muito importantes.

Como contextualizar essa guinada brasileira de agora rumo à África num mundo unipolar, de uma liderança única?
Garcia
- A política externa brasileira se orienta justamente no sentido de mudar a correlação de forças internacional. Uma das expressões dessa mudança é, sem dúvida nenhuma, vir a alcançar um mundo multipolar. Para isso, é preciso haver pólos. Evidentemente, uma aproximação do Brasil com a África, com a América do Sul, com a Índia, com a China, com outros países, vai reforçando essa idéia.

Quando falávamos há muitos anos no PT numa política de desenvolver relações bilaterais fortes, o que queríamos dizer? O mesmo que queremos agora, que a relação bilateral produza, ela própria, muitos efeitos comerciais, culturais, econômicos, sociais, de trocas em ciência e tecnologia, mas que também esses países possam operar na esfera internacional para mudar as relações internacionais.

A articulação do G-X em Cancún contra os subsídios agrícolas dos EUA e da União Européia, por exemplo?
Garcia
- Para surpresa nossa, isso tudo começou a acontecer muito mais cedo do que nós esperávamos. O episódio de Cancún é típico desse segundo efeito da nossa política externa, de fazer os países operarem juntos na esfera internacional.

Nesse sentido, há diferença entre a primeira parte da visita à África, aos países de língua portuguesa, e a segunda, aos países de língua inglesa, mais desenvolvidos?
Garcia
- É normal, porque isso tudo tem também um sentido prático também. Ir à África não é ir a Porto Alegre ou a Belo Horizonte. Envolve um investimento político, material, logístico muito grande. Como nós tínhamos o compromisso político de fazer essa política de abertura à África e como esses países todos ficam na mesma parte, a Sul, então resolveu-se juntar tudo e aproveitar para agendar contatos. Além do que, são países que têm relações entre si maiores.

Por que a Nigéria ficou de fora?
Garcia -
Muita gente nos pergunta por que não fomos à Nigéria ou ao Senegal. Nós iremos. O presidente deve voltar em outubro do ano que vem para passar a presidência da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) para São Tomé e Príncipe. Desde agora já há um convite para ele dar um salto ao Gabão e a mais dois ou três países. Além disso, vamos aos países árabes, que cobrem uma outra parte da África, a do Norte.

A ida à Líbia foi cancelada?

Garcia
- Não. O presidente vai pelo menos à Líbia, à Síria, ao Líbano e ao Egito.

Encontro com Kadaffi?
Garcia
- Encontro com todos os chefes de Estado, até porque a Líbia hoje é um campo de investimentos fantástico nas áreas de construção civil, e infra-estrutura, passando por uma modernização incrível. País petroleiro é país petroleiro.

Uma das reclamações do Itamaraty é que não se pode falar de integração político-diplomática sem integração física. Estão sendo discutidos novos vôos entre Brasil e América do Sul, entre Brasil e África?
Garcia
- Isso tem sido um tema obsessivo nas nossas discussões e foi abordado também aqui em Pretória. Nós vamos aumentar o número de vôos e foi até pedida uma autorização especial da África do Sul para que aviões da Varig possam fazer o trajeto São Paulo-Johannesburgo e Nova Déli ou Bombaim, na Índia.

O governo pensa em conceder subsídios para companhias aéreas?
Garcia
- Vamos ter que ver isso. Talvez algum tipo de subsídio mesmo ou alguma outra forma, porque um dos empecilhos é a crise do setor aéreo. O Itamaraty é o centro dessas discussões, mas o presidente tem tido uma fixação no tema.

O G-3 (Brasil, África do Sul e Índia) vai ser ampliado?
Garcia
- Estamos pensando em ampliar as fronteiras do G-3 para, por exemplo, Rússia, China e Argentina. Outra possibilidade é estabelecer uma interlocução privilegiada com eles, até porque a criação desses grupos e blocos está sobrecarregando excessivamente a agenda dos presidentes e de seus ministros.

O G-3 vai acabar virando o G-8 do B, para se contrapor ao G-8, o grupo dos países ricos?
Garcia
- Não há nenhuma intenção de fazer uma política confrontacionista.

Mas, num mundo tão desigual, um certo grau de tensão não é necessário?
Garcia
- Eu acho absolutamente normal. É ruim haver desequilíbrio, desigualdade, e nós estamos buscando reequilibrar o mundo. O problema é que ninguém quer perder espaço, e nós não vamos adotar uma política confrontacionista. Aliás, essa é a política da maioria dos países do mundo. A Rússia, a China, ninguém quer uma política confrontacionista. Mas nós somos grandes países e todos sabem que, qualquer movimento que nós façamos, o piso vai tremer.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Participou intensamente da cobertura do choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, em setembro de 2006.

E-mail: elianec@uol.com.br

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