Pensata

Eliane Cantanhêde

07/04/2004

Sem drama

A melhor coisa que o governo faz é "desdramatizar" essa pressão da imprensa americana e agora do Departamento de Estado para arrancar do Brasil maiores compromissos ainda com a não-proliferação nuclear.

O que mais o Brasil precisa fazer para mostrar que não quer fazer bombas atômicas e muito menos soltar essas bombas por aí? Já assinou o TNT (Tratado de Não-Proliferação Nuclear), já inscreveu a proibição na própria Constituição, já mostrou na prática e na história que não tem nada a ver com isso.

Jamais, por exemplo, o Brasil teria vontade, interesse, disposição, condições e dinheiro para atacar o Iraque ou assemelhados. Quanto mais jogar bombas atômicas onde quer que seja.

A falta de dinheiro, aliás, é um argumento poderosíssimo. Se não tem dinheiro nem para aumentar os soldos de soldados e oficiais das Forças Armadas --apesar da inquietação discreta mas crescente no Exército, na Marinha e na Aeronáutica por conta disso--, como é que o governo vai arranjar bilhões brincar de bomba? E para quê?

A "crise" se insinuou há uns três meses, quando o "New York Times" publicou a primeira reportagem, quase em tom de advertência, dizendo que o Brasil se opunha a inspeções internacionais na área nuclear.

Agora, a "crise" recrudesceu, com a publicação da notícia, de forma enfática e em manchete de primeira página, no "The Washington Post". E ganhou fôlego com uma nota do Departamento de Estado cobrando do Brasil a assinatura de um protocolo adicional do TNT que praticamente permite inspeções a qualquer hora, sob qualquer pretexto.

Mas é uma crise sem sentido, sem motivo. Pelo menos do lado de cá, onde Planalto, Itamaraty e Ministério da Ciência e da Tecnologia dizem que as cobranças são "inaceitáveis" por várias razões. Uma delas é que a usina de Resende nem está pronta. Por que deveria ser inspecionada? A segunda é que qualquer país que esteja desenvolvendo enriquecimento de urânio (inclusive para fins pacíficos, como o Brasil) vai querer proteger sua tecnologia, sua propriedade intelectual. Aliás, ninguém é tão bom nisso quanto os próprios EUA.

Por isso, trata-se de uma não-crise. A não ser que: 1) tudo isso encoberte interesses comerciais de grandes grupos internacionais de olho no processo nuclear brasileiro; 2) haja informantes de má-qualidade no governo americano (daqueles que atestavam o potencial das armas químicas do Iraque...) dizendo que o "governo esquerdista" do Lula quer jogar bomba no mundo. O primeiro caso, óbvio, faz mais sentido, mas nem isso justifica "crise".

O assessor internacional do Planalto, Marco Aurélio Garcia, me disse na segunda-feira (a Folha não deu, mas vale a pena você ler) que as críticas dos EUA e da AIEA dão "a impressão de que estão atirando em outro lugar e acertando no Brasil sem querer". Referia-se a países que realmente gostam de bombas, como Coréia do Norte.

Segundo Garcia, "o Brasil não tem nenhum risco de vir a se comprometer com a energia nuclear para fins militares". E deu três razões: "Pela Constituição, por princípio e até por uma questão financeira. Com que dinheiro?".

Depois de saber da nota do Departamento de Estado cobrando do Brasil a assinatura do Protocolo Adicional do TNT, Garcia acrescentou: "Desde a Constituinte de 1988, nunca houve nenhum indício, nem uma remota tentação brasileira de mudar a Constituição [para enriquecer urânio com fins bélicos]".

Cá pra nós, faz sentido. Se alguém tem espírito beligerante, com certeza não é o Brasil.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Participou intensamente da cobertura do choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, em setembro de 2006.

E-mail: elianec@uol.com.br

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