Pensata

Eliane Cantanhêde

12/01/2005

A política externa de Lula

Ao contrário da economia, que entra em 2005 com bons indicadores de crescimento, de emprego e de confiança, a política externa do governo continua em teste dois anos depois da posse de Luiz Inácio Lula da Silva. É uma política de grandes investimentos e de resultados de longo prazo. Portanto, incertos e não sabidos.

Comandada pelo chanceler Celso Amorim e articulada com o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, a política externa privilegia parcerias Sul-Sul, ou seja, com países como África do Sul, China e Índia, em detrimento de aprofundar a tradicional aliança com os dois maiores parceiros comerciais do Brasil, os Estados Unidos e a União Européia.

Em dezembro, o Itamaraty fechou seu ano celebrando dois acordos comerciais inéditos do Mercosul: são tratados de preferência tarifária para 950 produtos com a África do Sul e arredores e outro para 450 com a Índia.

O problema é que os principais interessados, que são os empresários de exportação e importação, não consideram satisfatória a troca. Nas grandes federações empresariais, como a Fiesp (de São Paulo), cresce a cobrança pela negociação da Alca (Acordo de Livre Comércio das Américas) e do acordo Mercosul-União Européia. Agora em janeiro, haverá uma tentativa de retomar as conversas sobre a Alca, mas o próprio Amorim considera as negociações com a UE mais avançadas. Pelo menos, chegaram à nevrálgica questão agrícola.

A posição comercial brasileira, que o Itamaraty classifica genericamente como resistência a um mundo unipolar (onde os Estados Unidos dão todas as cartas) se reflete nas negociações e nas posições políticas. Duas delas foram especialmente simbólicas da atual política externa brasileira em 2004, ambas muito ruidosas.

A primeira foi a entusiástica acolhida do Itamaraty a uma decisão de um juiz de Mato Grosso exigindo que os americanos que desembarcassem no Brasil passassem a "tocar piano" (deixar as impressões digitais) ao desembarcarem no país. A alegação jurídica era de tratamento simétrico, já que os EUA faziam o mesmo com os brasileiros. A reação política do governo foi imediata, comemorando nos bastidores as fotos das filas imensas de turistas americanos nos portos e aeroportos.

A segunda foi na trapalhada da expulsão e do recuo do jornalista Larry Rohter, do "New York Time", em maio, intitulada "Hábito de Beber de Lula se torna preocupação nacional". Lula, aliás, repudiou o termo "expulsão", justificando que o governo anunciara apenas a não-renovação do visto de permanência de Rohter. Mas não adiantou. Diante da repercussão interna e internacional, voltou atrás. Rohter chega a 2005 como correspondente do Time.

"Liderança mundial"

Ainda na afirmação como "líder mundial" --nova pretensão brasileira--, o chanceler Amorim deu voltas aos continentes negociando a concessão de uma cadeira de membro efetivo do Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas).

Conseguiu adesões nas Américas, na Europa, na Ásia, mas as resistências vêm de bem perto: da Argentina e do México, por exemplo, que vêem com desconfiança o excesso de desenvoltura brasileira no cenário internacional.

Para isso, o governo de Néstor Kirchner não se furtou nem mesmo de assinar um ato conjunto com o Paquistão contra alterações no formato do conselho da ONU. Assim como a Argentina quer frear o Brasil, o Paquistão tenta segurar a Índia, também candidata a uma vaga permanente.

Para consolidar de vez a pretensão, o Brasil deu um passo concreto: articulou-se com os EUA e com a França e assumiu a liderança da Força de Paz no Haiti, para onde enviou um contingente de 1.200 soldados do Exército. Falta tudo ao país, de projeto para o futuro a água potável. E o Brasil ainda se pergunta o que está fazendo lá.

Numa visita relâmpago de algumas horas ao Haiti, na semana passada, Amorim chegou a avisar que, sem colaboração internacional, o Brasil retiraria suas tropas e abandonaria o país definitivamente à sua própria sorte. Trata-se, portanto, de uma operação de louros ainda duvidosos.

Viagens e visitas

Na política externa, 2004 notabilizou-se também por dois fatores: a banalização de reuniões presidenciais e a profusão de visitas de chefes de Estado, concentradas sobretudo no final do ano.

Lula participou de reuniões como a do Grupo do Rio, no próprio Rio, em novembro, e a do Mercosul e associados, em Ouro Preto, em dezembro. Além disso, esteve em Cusco, no Peru, entre as duas, para formalizar a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações.

Como comparação: o arredio Kirchner, que diz desprezar reuniões de muita falação e poucos resultados, não esteve no Rio nem em Cusco e só chegou de última hora, quase de surpresa, em Ouro Preto.

Na seqüência de visitas, vieram ao Brasil presidentes e primeiros-ministros de China, Rússia, Paquistão, Canadá, Marrocos, Vietnã e Coréia do Sul. Sem contar o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, agora desligado do cargo.

Há controvérsias sobre os resultados comerciais dessas visitas, nas quais o Brasil é acusado de ceder muito e obter pouco. Principal exemplo é a China, cuja comitiva saiu de Brasília com apoio à sua classificação como "economia de mercado", mas não deixou nada de concreto.

Apesar disso, o Itamaraty avalia essas visitas não sob a ótica pragmática comercial, mas sim do prestígio. Trazer tantos líderes de países tão estratégicos é comemorado como grande vitória.

Se 2004 foi ano de viagens para Lula, 2005 não ficará atrás. Por exemplo: ele irá à África pela terceira vez desde a posse. Com uma novidade: desta vez com o Airbus novinho em folha e feito sob medida, ao gosto do freguês. O "sucatão", que serviu a tantos presidentes desde a ditadura, já era.

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    Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Participou intensamente da cobertura do choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, em setembro de 2006.

    E-mail: elianec@uol.com.br

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