Pensata

Eliane Cantanhêde

12/10/2005

A arma ou a vida

Caro leitor,

Diante do acalorado debate sobre o referendo do desarmamento, repito aqui uma Pensata que escrevi em 9/7/2003. Ela é muito atual. E sincera.
Um abraço, Eliane

A arma ou a vida

Quando criança, eu adorava Brasília, os jardins, amplos gramados, os vizinhos. E admirava especialmente a família que morava em frente à minha casa. Os pais eram um pouco mais velhos que a média e tinham um filho único cercado de brinquedos, livros, cuidados e carinhos. Desses meninos exemplares, bonito, primeiro de turma.

Pois bem, esse menino estava brincando com um primo em Goiânia quando os dois decidiram subir num banquinho e pegar escondido o revólver do tio em cima do armário. É preciso contar o resto?

A morte dele foi instantânea, com um tiro na cabeça. Destruiu a família, certamente deixou marcas terríveis no priminho e doeu muito tempo em toda a vizinhança. Para mim, ficou para sempre como um lembrete sobre o poder maléfico das armas, mesmo em mãos inocentes.

A discussão sobre o desarmamento não é nova no Brasil, mas vinha caminhando a passos de tartaruga. Enquanto no Rio, em São Paulo, em Recife, em qualquer zona urbana ou rural deste país pessoas inocentes morrem ou são marcadas para sempre por balas perdidas, tiroteios entre gangues, tiros enlouquecidos em brigas corriqueiras de bares ou de trânsito. Sem falar nos tiros caseiros, como o do meu amigo de infância.

Eu sempre acho que quem tem arma acaba usando. Às vezes, por uma bobagem, num dia de mau-humor, a la Camus ("Foi o sol!"). E salve-se quem puder! Geralmente, quem pode não é o cidadão pacato que compra a arma e se julga a salvo. É justamente o bandido, o agressor, muito mais acostumado às armas, à violência, sem medo, sem compaixão. Frio e experiente.

Dizem os defensores, ou produtores, ou vendedores de armas que, se o bandido pode andar armado, você também tem o "direito" de andar. "Para se defender." Então, imagine-se cara a cara com um ladrão armado. O que pode sua arma contra a dele? Nada! Enquanto você pensa, ele já atirou --para matar. É melhor não tentar puxar arma nenhuma. Talvez você tenha até mais chance de sobreviver.

Todas essas linhas para registrar (ou comemorar...) que agora, aparentemente, vai. O Congresso criou uma comissão mista de senadores e deputados para analisar basicamente um texto do governo, outro do senador Renan Calheiros (PMDB) e um terceiro do ex-deputado Eduardo Jorge (PT), para tentar juntar tudo em algo que reprima a venda e o porte de armas. E acabe, assim, salvando vidas.

O lobby pró-armas é forte, circula pela internet, chega por fax, financia campanhas eleitorais e passeia pelos corredores do Congresso. Mas a sociedade está tão escaldada, tão machucada pela onda infindável de crianças, adolescentes, grávidas e pais de família atingidos na praia, na escola, no lanche, no carro e em casa... É preciso dar um basta nisso!

O desarmamento é só um começo, mas é um começo absolutamente inadiável. Pena que não tenha sido décadas atrás. Tenho certeza de que meu amiguinho seria hoje um cidadão exemplar. E contra as armas.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Participou intensamente da cobertura do choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, em setembro de 2006.

E-mail: elianec@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca