Pensata

Eliane Cantanhêde

24/09/2003

Gugu, caso exemplar

Há males que vêm para o bem. O ditado cai perfeitamente no caso do programa do Gugu que falsificou bandidos, capuzes e ameaças, confundindo "jornalismo", show e mentira na guerra de audiência.

Os males: as falsificações e a difusão da violência ameaçam não apenas a credibilidade de um programa, mas de todo um sistema de televisão no Brasil.

O bem: de repente, estamos todos discutindo uma questão que é importantíssima, mas sempre passou batido.

Qualquer um de nós que tenha acesso à internet, ao cinema e à TV a cabo leva um susto, quase um soco no estômago, quando se depara com a programação da TV aberta num dia qualquer.

Você liga um canal e está passando um enlatado desses de quinta categoria e péssima tradução. Muda para outro e fica escandalizado com um programa de mau gosto sobre sexo, recheado de erros de português. Tenta um terceiro e dá de cara com aqueles seriados orientais em que todo mundo esfaqueia, surra e mata todo mundo. Como alternativa, que tal um culto da Universal? Um horror!

A conclusão é óbvia: quem tem mais dinheiro, mais educação e mais autoproteção se vira com a TV a cabo; quem tem menos dinheiro, menos educação, menos acesso a informação (e, portanto, é mais vulnerável à baixaria) é jogado com o aval do Estado numa TV que, em vez de educar e construir, pode deseducar e destruir à vontade.

A TV, pois, é um dos mais poderosos instrumentos para aprofundar o fosso social no Brasil. Em vez de universalizar o bom e o bem, discrimina quem pode e quem não pode, concentrando o mau e o mal em quem menos pode se defender.

Segundo a psicanalista Ana Olmos, especializada em infância e adolescência e presidente da ONG TVer, as maiores vítimas são as nossas crianças, que passam a média de quatro horas por dia na frente de um aparelho de televisão. Ou seja: sendo educadas, em geral, para a violência, o consumo, o sexo prematuro.

Ana, que participa intensamente dos trabalhos do Congresso para uma lei disciplinando a questão, diz que o Estado não pode simplesmente se omitir. E que não dá para alegar "censura" quando se fala em disciplinar o que, afinal, é... concessão pública.

Na Suécia, por exemplo, a publicidade de brinquedos e produtos para crianças só pode ser transmitida à noite. Por quê? Porque crianças não têm discernimento para separar joio e trigo, engolem qualquer porcaria como bom produto. A publicidade sueca, portanto, é dirigida não aos filhos, mas aos pais. E ninguém fala em censura.

Que Gugu seja punido pela irresponsabilidade, pela ameaça a milhões, pela difusão da violência pela violência. E que, sobretudo, sirva de exemplo. Leis e homens públicos servem exatamente para defender o cidadão e os bens e serviços públicos desse tipo de coisa.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Participou intensamente da cobertura do choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, em setembro de 2006.

E-mail: elianec@uol.com.br

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