Pensata

Alcino Leite Neto

19/01/2004

O "clip" musical de Serguei Eisenstein

Durante muito tempo vivi intrigado com um trecho da autobiografia do diretor espanhol Luis Buñuel no qual ele conta que, em 1930, andou à caça do diretor soviético Serguei Eisenstein em Paris para dar nele uns bofetões.

Assim escreve Buñuel em "Meu Último Suspiro" (ed. Nova Fronteira): "Após haver vibrado com 'Potenkim', eu me senti ultrajado na França, em Epinay, vendo um filme de Eisenstein que se chamava 'Sonate de Printemps'. Nele podia-se admirar um grande piano branco num campo de trigo suavemente agitado pelo vento, cisnes nadando num lago de estúdio, e outras vulgaridades. Furioso, eu procurara Eisenstein pelos cafés de Montparnasse para esbofeteá-lo, mas sem encontrá-lo. Mais tarde, ele contou que 'Sonate de Printemps' era obra de seu operador Alexandrov. Mentira. Eu vi o próprio Eisenstein filmando, em Billancourt, a cena dos cisnes" (pág. 181).

Todo mundo sabe que "O Encouraçado Potemkim" (1925) é um dos principais filmes comunistas e uma das maiores obras do cinema, mas que filme seria esse de título tão kitsch, "Sonate de Printemps" (Sonata de Primavera), e que não aparece na filmografia do diretor? E por que ele teria provocado uma ira tão grande em Buñuel, que, aliás, detestava pianos e, aos cisnes, preferia os avestruzes?

A curiosidade me levou à autobiografia de Eisenstein, "Memórias Imorais" (ed. Companhia das Letras). Mas em nenhum momento ele fala ali desse tal filme, "Sonata de Primavera". Conta, porém, que, durante sua visita à França, em 1929, ao lado de seu assistente Grigori Alexandrov e de seu fotógrafo Eduard Tissé, estes dois acabaram realizando um "pequeno musical, no qual Madame Marie, agora Marie Gris, canta ao lado de um piano que quase cega o espectador, tamanha sua alvura." (pág. 156).

Aqui, nesse trecho, uma nota de rodapé no livro avisava: "Esse pequeno filme, 'Romance Sentimental', na realidade foi feito por G.V. Alexandrov e E.K. Tisse, mas é atribuído a Eisenstein".

Em vez de me ajudar, a autobiografia complicou o meu enigma. Eu tinha agora não apenas um piano, mas também uma certa Marie Gris, dois filmes diferentes rodados em Paris, "Sonata de Primavera" e "Romance Sentimental", e uma confusa história de autoria (quem fez o quê: Eisenstein ou Alexandrov e Tisse?).

Para abreviar esta história, devo dizer ao leitor que resolvi há poucos dias a minha investigação, depois que um amigo me trouxe da França uma sensacional caixa de DVDs com todos os filmes de Eisenstein.

Na caixa, como bônus, está ali um filme curto (cerca de 20 minutos) chamado "Romance Sentimental", feito em Paris, em 1929, com roteiro e direção de Alexandrov e Eisenstein, estrelado por Mara Griy (segundo os créditos) e onde aparecem não apenas o piano branco, mas também os cisnes branquíssimos, árvores cheias de flores brancas, esculturas alvas de Rodin que rodopiam nos planos, um suntuoso lustre de cristal e um cão aristocrático que anda enfastiado pelo salão de um palácio, sem falar nos letreiros iniciais do filme: "O outono. tristeza. o amor defunto. tais são o tema deste velho romance russo" --enfim, todo um universo de elementos bastante kitsch-burgueses, muito opostos aos valores usuais do cinema de Eisenstein.

O espectador, à primeira visão do filme, pergunta-se por que cargas d'água o diretor soviético, que revolucionou a linguagem cinematográfica e é um dos mestres da arte moderna, teria rodado tal coisa.

Uma primeira resposta está nas "Memórias Imorais": para ganhar uma grana. "Cinderela é quem nos fará ganhar dinheiro. Afinal de contas, é preciso viver!", escreve Eisenstein. "Cinderela" é como o diretor se refere a Mara Griy (ou Marie Gris), a cantora do filme, amante do rei das perólas Leonard Rosenthal.

Eisenstein, Alexandrov e Tisse tinham saído da União Soviética com pouquíssimo dinheiro e a incumbência de irem filmar nos EUA de qualquer jeito, levando junto e sub-repticiamente a mensagem comunista. Até conseguirem o visto americano (e um contrato com a Paramount), tiveram que se virar em Paris e outras cidades européias. Estavam abertos a todas as propostas --e Eisenstein chegou a ser consultado para realizar um spot publicitário para a Nestlé suíça, negócio que acabou não dando certo.

Deu certo, porém, a encomenda do "rei" Rosenthal, e Eisenstein filmou sua amante cantando, ao piano, uma balada russa. "Romance Sentimental" consiste inteiramente nessa cantoria, intercalada de imagens de cisnes, estátuas, nuvens, árvores, ondas do mar, estrelas falsas, luzes, fogos. E aqui começa o interesse desse filme rejeitado e desconhecido, do qual se envergonhava o próprio Eisenstein. Ele é, em todos os sentidos, e pioneiramente, um "clip" musical, o patriarca da estética do videoclip.

Além disso, é a primeira produção sonora de Eisenstein (o filme falado se difundiu a partir de 1929). E, nele, o diretor aproveita para realizar pequenas, mas intensas, experimentações cinematográficas com a música e até mesmo com a voz banal de Madame Gris. Antes de começar a balada tristonha e repetitiva, frenéticos sons de uma música electroacústica, à la Varèse, acompanham as imagens de um mar furioso, introduzindo no filme dissonâncias propriamente modernas.

Os acordes patéticos da canção ora ilustram as imagens de uma natureza revolta, de um mundo exterior em ebulição, ora ecoam melancolicamente na sala do palácio, que é uma espécie de prisão emocional, onde a protagonista ao lado do piano exibe seu tédio burguês e seu vazio sentimental, quer dizer, a sua sublimação sexual. Em escala menor, ainda aqui, certo princípio dialético do cinema de Eisenstein continua ativo.

A balada segue num crescendo --e assim também as imagens. A cantora-personagem vai se impregnando da emoção musical, até que tem sua sensualidade redespertada. A efusão libidinal se espelha em sequências com as estátuas nuas de Rodin entrelaçadas num beijo, nas fagulhas de luz que explodem na tela, nos planos de Madame Gris flutuando com seu piano no céu, e assim por diante. Um clímax de euforia pansexual (frequente no restante da obra de Eisenstein) explode no minimusical.

Perversamente, Eisenstein faz dessa encomenda kitsch um filme que reflete sobre o puritanismo burguês e que exibe a tão frequente melancolia feminina no cinema (e por que não na vida?) como fruto da repressão sexual, oferecendo por fim a promessa de uma liberação erótica --ou de uma libertação "tout court", como em tantos outros filmes do diretor.

EISENSTEIN E O "SENHOR DOS ANÉIS"

O pessoal que adora as sequências de guerra de "O Senhor dos Anéis" deveria ver "Alexandre Nevsky", épico de Eisenstein sobre o príncipe e herói guerreiro russo do século 13. Feito em 1938, esse filme tem talvez a mais sofisticada cena de batalha da história do cinema --sequência que, quase 60 anos depois, permanece extraordinariamente forte e emocionante.

O DIRETOR DAS UTOPIAS

A visão dos filmes de Eisenstein depois do fim da URSS (União das Repúblicas Soviéticas) e do colapso do comunismo coloca ao espectador, sem dúvida, um problema de ordem ideológica. Ele foi um dos grandes realizadores da propaganda comunista soviética. As imagens no entanto são tão belas e comoventes, a elaboração tão grandiosa, a invenção plástica tão rica que espectador nenhum fica insensível a elas.

Por trás da propaganda, o espectador descobre que Eisenstein, de fato, realizou vastos afrescos históricos que expressam o passado da Rússia desde os tempos mais remotos até os anos da Revolução de 1917, embalado não apenas por uma utopia do século 20, mas duas: a do comunismo e a do cinema como arte total. Não é apenas a beleza dos filmes que nos comove, mas a dupla confiança de Eisesntein.

SOVIÉTICO OU LETÃO?

Com o fim da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), ficou complicado dizer que Eisenstein (1898-1948) é um realizador soviético. As novas divisões territoriais também impedem de chamá-lo de russo, pois de fato nasceu em Riga, capital da Letônia.

Cumpre ao leitor decidir se dirá que Eisenstein é um "diretor letão", reenquadrando-o na nova condição geográfica, ou se o chamará de "diretor soviético", preservando no próprio qualificativo um estrato dessa história, a da URSS, da qual ele foi um dos protagonistas centrais, bem como uma das vítimas.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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