Pensata

Alcino Leite Neto

01/02/2004

Por uma nova rebelião das minissaias

Um passeio pelos Jardins, em São Paulo, e a deliciosa constatação: as minissaias realmente estão de volta. Talvez seja pura utopia, mas haverá um dia em que elas não deixarão mais a humanidade para se esconder no armário de roupas em desuso. A vida será um perpétuo verão de minissaias.

A minissaia foi uma das invenções sublimes do século 20. O pequeno corte de tecido que envolve as nádegas desaforadamente, exibe com decisão a nudez das pernas e chega quase até o limite das promessas femininas é um achado estilístico --sintético, econômico e engenhoso: um hai-kai da moda.

Sem contar que é um emblema da liberdade. Toda vez que uma garota veste hoje uma minissaia, ela está portando ao mesmo tempo a lembrança de uma rebelião.

A história da mulher poderia ser dividida em duas partes: antes e depois da minissaia, como se divide mais frequentemente em antes e depois da pílula anticoncepcional --aliás, duas criações que se difundiram quase ao mesmo tempo. Passarão muitos séculos até que se tenha uma idéia tão provocadora, elegante e feliz de vestimenta.

A invenção da minissaia é fonte de querelas tão complicadas quanto a do avião, que divide o mundo entre os defensores dos irmãos Wright e os do nosso Santos-Dumont. Para os britânicos, foi Mary Quant quem criou a minissaia, por volta de 1964-1965. A tese tem o apoio da maioria dos especialistas, mas há autoridades francesas no assunto que insistem que a minissaia foi projetada por André Courrèges, talvez o estilista mais ousado dos anos 60.

Melhor talvez seja se fiar na própria Mary Quant, que indagada sobre a origem da minissaia, respondeu: "Não fui eu ou Corrèges quem a inventou --foram as garotas na rua".

Naqueles anos 60, as mulheres ainda não se torturavam tanto com as dietas e as celulites, e vestir uma minissaia não era apenas uma questão ocasional de estilo: por força da história, a moda implicava, mesmo involuntariamente, numa atitude existencial em favor da liberdade.

Os homens chegaram a usar saiotes na Antiguidade romana e na Renascença para terem mais autonomia de movimento durante as lutas e as guerras. Eles obrigaram as mulheres, porém, a se cobrir dos pés à cabeça durante milênios, e ainda as obrigam, em certos países. Mesmo eles se cobriram bastante ao longo dos séculos. A moda é uma das mais resistentes formas de tirania social --hoje, de um tipo de tirania consentida, de servidão voluntária ao mercado.

Mas, nos anos 60, as moças adotaram a minissaia como afronta ao jugo moral imposto pelo homem e para promover a liberação das gerações femininas futuras. Foi uma febre que então se espalhou muito mais rapidamente que as calças compridas para mulheres, um outro signo de rebeldia, difundido lentamente a partir dos anos 30, sobretudo graças à estilista francesa Gabrielle "Coco" Chanel.

Quem era criança na época de Mary Quant e de Wanderléa deve se lembrar que, no Brasil patriarcal e provinciano, a calça feminina nem bem estava ainda implantada, quando, um belo dia, começaram a aparecer uma multidão de pernas nuas de moças bem fornidas vestidas de minissaias.

E deve se lembrar como as calcinhas de repente fizeram também a sua aparição transgressiva, como um vislumbre que se tinha no momento em que as moças de saias curtíssimas entrecruzavam as pernas ou subiam as escadas na nossa frente. Os anos 60 realmente colocaram o mundo de ponta-cabeça.

Talvez seja apenas por um resto de convenção, mais que de pudor, que as garotas de hoje em dia, nos ambientes sociais, fiquem puxando insistentemente para baixo a sua minissaia, tentando ajustá-la numa altura discreta, meçam detidamente o modo de cruzar as pernas ou, ao subir as escadas rolantes, peçam que os namorados fiquem atrás delas, impedindo que os passantes tenham uma visão indiscreta.

Convenção, sim, pois as calcinhas já viraram até mesmo um acessório a se exibir, como os soutiens. Um dos estilos contemporâneos consiste em colocar os jeans suficientemente baixo para que uma boa parte da calcinha apareça entre a cintura e a miniblusa. Os garotos fazem o mesmo, com um modo de vestir as calças que as dispõe bem abaixo da cintura, enquanto sobem a cueca, deixando-a bastante visível.

Esse estilo denota a necessidade de meninos e meninas acentuarem sua diferença sexual por meio da exibição das peças íntimas, já que na superfície dos jeans e camisetas há uma forte tendência à indiferenciação na moda de ambos.

Outra contenda complicada e sem fim em relação à minissaia é a que trata do tamanho ideal desta roupa. Certamente cada corpo feminino pede um modelo diferente, mas eu tenho cá comigo que o melhor tamanho é o de 20 centímetros de altura, e não o de 30 centímetros. E não vai aqui nenhuma segunda intenção: estou pensando apenas na graça que é ver passar uma mulher que assumiu decididamente a vontade de usar uma minissaia e exibir seu corpo. Uma minissaia "longa" tem algo de um hipócrita arrependimento.

Deve haver feministas que hoje contestam a minissaia, por esta ter esgotado o seu potencial revolucionário e se transformado em puro fetiche, um meio de exploração voyeurística do corpo feminino. Será?

É certo que as mulheres continuam a ser muito exploradas _só não vê quem não quer. Nos mesmos anos 60, alguns já percebiam como a liberação feminina poderia ser absorvida maliciosamente pela publicidade e a emergente indústria da pornografia. Prisioneiras sexuais seculares, as mulheres se revoltaram para, em seguida, serem transformadas livremente em mercadoria do entretenimento masculino.

Sem falar que, liberadas da norma puritana, elas foram enquadradas de imediato num outro regime despótico, aquele que lhes pede um corpo perfeito. É essa fantasia de perfeição que alimenta a poderosa indústria da beleza, das dietas, da moda e das ginásticas no mundo.

Ainda se contará a história medievalíssima dos tormentos interiores e físicos, das auto-punições, torturas e doenças, da longa série de angústias com regimes, das anorexias perigosas, das depressões infindas que vão fazendo a história da mulher no período pós-feminista.

Há quem diga que a minissaia cai melhor nos corpos jovens e bem feitos. Mas por que diabos qualquer mulher, a menos certinha dentre elas, não poderia usar uma saia curtíssima?

Eis uma nova forma de vestir revolucionariamente a minissaia: rompendo com esta lei tirânica que se impôs às mulheres em nome do fantasma da perfeição física. A exibição assumida das imperfeições do corpo, a exibição do corpo como singularidade, é o modo atual de elas lutarem contra a dominação masculina e também contra as pressões servis que as próprias mulheres se impõem mutuamente nos desfiles de moda, nas revistas, nos programas de TV, nas conversas soltas.

E assim eu termino este manifesto em prol da rebelião das saias curtas: que todas as mulheres possam exibir soberanamente seus corpos tais como eles são! Que todas as mulheres usem minissaias sem medos nem rancores! E que todas as minissaias tenham no máximo 20 centímetros!
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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