Pensata

Alcino Leite Neto

14/02/2004

O Cristo polêmico de Mel Gibson

É bastante provável que uma nova e barulhenta polêmica religiosa tome conta do Ocidente assim que estrear nos EUA, em 26 de fevereiro, "A Paixão de Cristo", o filme dirigido pelo ator Mel Gibson.

A polêmica, aliás, já começou. "A Paixão de Cristo" foi assunto de capa da revista "Newsweek" e vem sendo nas últimas semanas tema de debates na imprensa americana e européia.

A Igreja Católica tem pronta a sua reação ao filme: um documento preparado pela Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos que será divulgado na época da estréia, alertando para o equívoco que é acusar os judeus pela morte de Cristo.

Pois este é o ponto mais controvertido de "A Paixão de Cristo": seu suposto anti-semitismo. Mel Gibson está sendo acusado de representar os judeus como caricatos e malévolos, jogando sobre eles toda a culpa pela crucificação de Jesus --e revitalizando assim uma acusação milenar que gerou infinitos banhos de sangue e hoje parecia em completo desuso.

A fim de reforçar a culpabilidade dos judeus, Gibson teria até mesmo subvertido a tradicional representação hollywoodiana dos romanos, tornando-os no geral menos cruéis --se descontarmos um grupo de soldados que tortura Cristo de uma maneira jamais vista no cinema, como relata quem assistiu, o que pode levar o filme a ser proibido para menores.

Caifás, líder religioso judeu da época de Cristo, teria sido representado como um personagem mais detestável que Pilatos, o chefe romano na Palestina. A "Newsweek" dedicou-se a conferir os elementos do filme, item por item, com as versões históricas mais consolidadas a respeito desse período tão nebuloso.

Não param aqui as extravagâncias de Mel Gibson. "A Paixão de Cristo" é inteiramente falado em aramaico e latim, com legendas em inglês. Como nenhum estúdio americano quis bancar a produção, o próprio ator tirou do bolso os US$ 25 milhões gastos no filme.

Sem o aval de um grande distribuidor, Gibson recorreu a uma empresa independente, a Newmarkt Films, e fez a campanha de lançamento junto às igrejas protestantes e evangélicas dos Estados Unidos. Mostrou o filme para centenas de pastores, que passaram a recomendá-lo fervorosamente aos seus seguidores, considerando-o um verdadeiro e maravilhoso instrumento de conversão. Milhões de ingressos para a estréia já foram vendidos pelas igrejas.

Estranhamente, Gibson, que nasceu em Nova York, criou-se na Austrália e hoje vive nos EUA, não é protestante nem evangélico. É católico ultraconservador. Seu pai, Hutton Gibson, foi líder de uma seita católica que recusava as reformas deslanchadas na Igreja pelo Concílio Vaticano 2º., realizado entre 1962 e 1965, sob o comando do papa João 23 e depois de Paulo 6º. Entrevistado certa vez sobre esse concílio, Hutton afirmou que se tratava de uma "intriga maçônica sustentada pelos judeus".

O Concílio Vaticano 2º promoveu uma série de reformas na estrutura, na liturgia e na catequese da Igreja. Uma delas levou à substituição do latim, língua na qual até então era rezada a missa, pelo idioma local das igrejas. O concílio também apontou como erradas as leituras dos evangelhos que culpam os judeus pela morte de Jesus --superando em tese o anti-semitismo histórico da Igreja.

Até hoje, porém, Mel Gibson só assiste missa em latim. Ele também não come carne nas sextas-feiras, resguardando uma regra tradicionalista católica. Para o filme, disse ter se inspirado nos escritos das freiras Anne Catherine Emerich (1774-1824), nascida na Alemanha, e de Maria Coronel Agreda (1602-1665), espanhola. Da primeira, conta-se que sofria as dores e os sangramentos da Crucificação todas as sextas-feiras. A segunda teve seus escritos, baseados em evangelhos apócrifos, considerados blasfemos até mesmo pela Inquisição. Por esse repertório todo, Gibson, caso vivesse no Brasil, se daria bastante bem com a TFP (Tradição, Família e Propriedade).

No mundo do cinema, é conhecido pela bela estampa física e por sua atuação nas séries "Mad Max" e "Máquina Mortífera". É um bom ator, melhor trabalhado por Peter Weir, em "O Ano em que Vivemos em Perigo", e recentemente por Night Shyamalan, em "Sinais".

Ele só não encarnou Jesus em seu filme porque já passou da idade. Está hoje com 48 anos, e Cristo morreu com 33. Convidou para o papel o ator James Caviezel, igualmente católico. "A Paixão de Cristo" é a terceira produção que Gibson dirige, depois de "Coração Valente" (1995), pelo qual ganhou vários Oscar, e "O Homem Sem Face" (1993). "O Espírito Santo trabalhou por meu intermédio durante o filme", disse ele sobre "The Passion of Christ".

Em declaração ao jornal francês "Le Monde", Josh Baran, responsável pelo marketing de "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, afirmou que "para Gibson, não está em questão a distribuição (do filme), mas o acabamento da obra de Deus".

E aqui estão mais dois pontos polêmicos suscitados pelo filme de Gibson: primeiro, o fato de ele ter agido inteiramente fora do sistema hollywoodiano; depois, o de aspirar que seu filme fosse equivalente a uma experiência religiosa e, portanto, a um instrumento de catequese.

Quando, em seus primórdios, o cinema demonstrou ter imensa capacidade de impregnar a consciência dos espectadores, o regime comunista soviético e a Igreja Católica foram dos primeiros a priorizar a nova arte em sua doutrinação.

Até a década de 60, a igreja era responsável pela manutenção de um vasto circuito de cineclubes em vários países, inclusive no Brasil. Críticos católicos, alguns deles muito importantes, acompanhavam detidamente a produção mundial, apontando os filmes que mereciam ser vistos pelos fiéis e aqueles que haviam se desviado do bom caminho. Premiações oferecidas pela igreja ainda sobrevivem em festivais internacionais de cinema, como Cannes e Veneza.

Apesar de Hollywood ter sido controlada sobretudo por empresários judeus, raramente foi realizado na capital do cinema um filme bíblico ou sobre Jesus que contrariasse a Igreja Católica. Pragmáticos, os produtores pensavam nos mercados hegemônicos e faziam as obras do modo mais ecumênico possível.

Hollywood teve papel central na doutrinação do homem americano e ocidental para o espírito e o modo de vida capitalistas, mas, nos filmes de conteúdo bíblico, pouquíssimas vezes --ou nenhuma vez-- colocou o cinema a serviço de uma catequese religiosa específica (o mesmo não pode ser dito a respeito de conteúdos políticos).

Seria difícil que Hollywood produzisse, por exemplo, um filme como "Maria, Mãe do Filho de Deus" (com Padre Marcelo), que funciona visivelmente, no Brasil, como uma arma de propaganda católica contra o avanço dos evangélicos, tão avessos à idolatria e ao culto da Virgem --basta lembrarmos o "chute na santa" dado por um pastor na TV. Aguardemos a resposta evangélica.

Infelizmente, nós vivemos num tempo sombrio e retrógrado, cujas imagens também se refletem no cinema, impregnando a sala escura com o obscurantismo das religiões.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca