Pensata

Alcino Leite Neto

15/03/2004

O voto passional e racional dos espanhóis

A vitória dos socialistas nas eleições gerais de hoje na Espanha é uma surpresa e só tem uma explicação: foi motivada pelos atentados da última quinta-feira, 11 de março, que tiraram a vida de 200 pessoas e feriram centenas de outras.

O socialista José Luis Rodrigues Zapatero é o novo premiê espanhol e seu partido ganhou quase a maioria das cadeiras no Congresso. Em menos de uma semana, o país sofreu duas reviravoltas que redefinem a vida política na Espanha, com prováveis reflexos em toda a Europa.

Até a manhã do domingo, dia da eleição, ninguém poderia prever tal desfecho eleitoral. As pesquisas apontavam a vitória do Partido Popular (PP, de centro-direita), no poder desde 1996, e de seu candidato ao posto de primeiro-ministro, Mariano Rajoy. Raros analistas cogitaram que a solidariedade cívica com a tragédia poderia levar a uma corrida às urnas e, assim, como costuma ocorrer no país quando se reduz a abstenção, a um aumento do voto socialista.

O voto espanhol foi redefinido em apenas três dias, não apenas como reação passional, mas também como resposta calculada à série de desastradas atitudes do premiê José Maria Aznar (PP) e de seu governo em relação aos atentados.

A maior parte dos espanhóis, ao votar pelos socialistas, chegou à conclusão, talvez nas últimas horas antes de depositar o seu voto, que o governo de Aznar mentiu a respeito da tragédia e foi politicamente oportunista.

Deduziu que o governo, ao culpar imediatamente após os atentados o grupo terrorista basco ETA, estava apenas reforçando uma de suas principais bandeiras eleitorais e tentando evitar a hipótese de uma ação terrorista islâmica.

Aceitar a "hipótese islâmica" seria, para o governo, reconhecer que ela teria ocorrido como resposta ao apoio incondicional de Aznar aos EUA durante a invasão do Iraque.

O governo difundiu, por várias vozes, a culpa do ETA e chegou mesmo a orientar que as suas embaixadas indicassem como certa a mão desse grupo no massacre. Os fatos, porém, foram atropelando a apressada lógica eleitoral do governo.

Em cartas enviadas a jornais, o Al-Qaeda assumiu a autoria dos atentados. O próprio serviço secreto espanhol passou, na sexta-feira, a defender a hipótese de um ataque planejado por terroristas islâmicos, após descobrir indícios criminais. Em questão de horas, a ambiguidade tomou conta do governo e a incerteza dominou o povo espanhol --o mesmo que tanto preza a firmeza de caráter. Manifestantes passaram a pedir ao governo que contasse a "verdad", como se Aznar estivesse escondendo algo da nação.

A derrota da centro-direita foi provocada por uma rejeição emocional à mentira e à incerteza, que lançou a vida civil num terreno pantanoso, mas ao mesmo tempo indica a decisão racional e concertada da maior parte dos espanhóis de apostarem na hipótese de uma ação do Al-Qaeda e, portanto, romperem com sua causa imediata: o alinhamento da Espanha com a política internacional de George W. Bush.

De certo modo, a vitória dos socialistas na Espanha é uma derrota no plano mundial do presidente americano, que deve perder um de seus mais fiéis aliados na Europa. Não se deve esquecer que, à época da invasão do Iraque, os espanhóis foram majoritariamente contra a ação dos EUA e saíram aos milhões às ruas para protestar contra a adesão da Espanha à empreitada de Bush --apelo que Aznar simplesmente ignorou. Se ampliamos nossa perspectiva, as eleições de domingo podem ser vistas como um reflexo dessa disposição anterior dos espanhóis, atualizada pelos acontecimentos trágicos.

A vitória de Zapatero na Espanha traz certo alento para os socialistas europeus, que nos últimos anos acumularam sucessivas derrotas em vários países, ao ponto de se questionar, como na França, a própria sobrevivência dos partidos dessa tendência política.

Resta, porém, saber se é uma vitória que pode acarretar uma verdadeira mudança sistêmica na ordem política espanhola e, portanto, européia --ou se não passará de um resultado de ocasião, favorecido por um trauma social.

Os socialistas vivem hoje a maior crise de sua história --crise de princípios, de lideranças, de programas, de organização. O antibushismo, a oposição à política internacional americana e sua guerra ao terror --sentimentos muito disseminados na Europa, sobretudo entre os jovens-- não constituem obviamente bandeiras suficientes para renovar o ideário de partidos de esquerda, quando eles não têm respostas sólidas a problemas imediatos, como o desemprego, a precarização do trabalho e dos serviços públicos, a falta de oportunidades sociais para a juventude, a imigração etc.

Para sobreviverem, os socialistas europeus precisam hoje renovar o seu repertório e o seu programa político, de modo a seduzir um eleitorado de esquerda cada vez mais apático e mais fragmentado. Levam a vantagem, porém, de serem ainda a principal força de esquerda do continente.

A vitória socialista não deverá obscurecer a tragédia ocorrida em Madri em 11 de março --e as suas sinistras consequências históricas. Se comprovada a participação do ETA, isso significa que o movimento terrorista basco, cujas lideranças foram perseguidas duramente nos últimos anos pelo mesmo Aznar, passou a ser encabeçado por uma nova geração de militantes ainda mais radical --e disposta ao pior.

Se comprovada a ação do Al-Qaeda, o que é mais provável, estamos diante de um cenário amedrontador: os atentados na Espanha seriam apenas o início de uma guerra que o terrorismo islâmico deve estar decidido a levar à Europa inteira.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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