Pensata

Alcino Leite Neto

29/03/2004

Os franceses empurram a esquerda para o poder

A direita européia acaba de sofrer sua segunda derrota em menos de um mês. Primeiro, foi na Espanha, em 14 de março, quando, contrariando todas as expectativas, o primeiro-ministro José Maria Aznar (centro-direita) foi superado pelo socialista José Luis Rodrigues Zapatero.

Agora, foi a vez da França, onde a esquerda venceu espetacularmente as eleições regionais, batendo a coligação de direita e centro-direita, liderada pela UMP (União por um Movimento Popular), o partido do presidente Jacques Chirac.

Espetacularmente, porque a coligação socialistas-comunistas-verdes, até a meia-noite de domingo, dia 28, ganhava em 20 das 22 regiões metropolitanas francesas, arrebatando 50% dos votos, contra 37% da centro-direita e 13% do Front Nacional, de extrema-direita.

A organização administrativa da França é bem diferente da do Brasil. O país está dividido em comunas, que formam os departamentos, que por sua vez compõem as regiões --que seriam como "estados", só para usar uma imagem simples de apreender.

São 26 regiões ao todo, assim distribuídas: 22 regiões metropolitanas (ou seja, da França continental mais a Córsega, ilha no Mediterrâneo) e 4 regiões de ultramar (Guiana Francesa, Guadalupe, Reunião e Martinica). Nas eleições, são escolhidos os conselheiros regionais para um mandato de cinco anos.

Nas últimas eleições, em 1998, a direita venceu em 14 regiões. Desta vez, exceto na Alsásia (no nordeste do país, fronteira com a Alemanha), perdeu em todas elas, mesmo em seus redutos mais tradicionais.

Importantes no país, pois dizem respeito à administração de orçamentos significativos e à gerência de redutos políticos, as eleições regionais agora ganharam uma relevância superior, pois serviram como julgamento ao governo de Chirac e de seu primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Por causa da derrota acachapante no domingo, Raffarin tem chances de cair nos próximos dias.

A derrota atinge não apenas a direita como um todo, mas o núcleo ministerial em particular. Como na França se admite a acumulação de cargos, alguns ministros concorriam ou reconcorriam ao posto de conselheiros regionais --e vários deles perderam.

Uma das principais lideranças da direita francesa, Valéry Giscard d'Estaing (presidente do país entre 1974 e 1981), também foi vencido em seu departamento, o que representou outra surpresa. A derrota que o atinge aos 78 anos pode sepultar a sua vida política.

Outro fato surpreendente das eleições regionais francesas foi o recuo da abstenção, que crescia há mais de décadas. O voto na França não é obrigatório e, em 1998, 42% dos eleitores se abstiveram nas regionais.

No primeiro turno deste ano, o número baixou para 37,5%. No segundo turno, no domingo, caiu para 35%, demonstrando a disposição dos franceses em não repetir o vexame das eleições presidenciais de 2002.

Em 21 de abril de 2002, a alta taxa de abstenção (28,4%, um recorde em eleições presidenciais) foi uma das principais causas da vitória do líder neofascista Jean-Marie Le Pen no primeiro turno. Ele desbancou o socialista Lionel Jospin e concorreu no segundo turno com o candidato de centro-direita Jacques Chirac. O país inteiro, então, se mobilizou contra Le Pen, e mesmo a esquerda teve que pedir votos ao seu inimigo Chirac.

Chirac, que havia alcançado ridículos 19,8% no primeiro turno, foi eleito presidente do país com 80% dos votos no segundo turno. A direita saiu reforçadíssima dessa "união nacional" contra Le Pen e, logo depois, venceu completamente as eleições legislativas. Os partidos de esquerda, sobretudo o Socialista, viraram terra arrasada.

"É o 21 de abril ao contrário", afirmou no domingo o ministro François Fillon (centro-direita) a respeito das eleições regionais. Em outras palavras, as novas eleições foram a revanche da esquerda, sobretudo dos socialistas. Mas que esquerda e que socialistas?

Em 2002, a abstenção e a dispersão dos votos socialistas pelos partidos menores de extrema-esquerda foram interpretadas como uma reação do eleitor à política do primeiro-ministro Lionel Jospin (socialista), que a maioria dos eleitores não conseguia distinguir do programa da centro-direita. "Jospin e Chirac, é tudo igual, tanto faz", diziam alguns.

A vitória sucessiva da esquerda na Espanha e na França pode ser resultado de uma mesma onda histórica que vai superando uma década ou quase de predomínio da direita no continente. Elas resultam, porém, de causas muito diversas.

O direitista Aznar está deixando o governo da Espanha depois de ter promovido a pujança econômica do país e uma queda formidável do desemprego. Sua derrota para o socialista Zapatero aconteceu, "in extremis", depois da tragédia em Madri.

Os eleitores reagiram à tentativa de Aznar de esconder que os atentados haviam sido cometidos por terroristas islâmicos, estes por sua vez motivados pelo apoio da Espanha aos EUA na invasão do Iraque. Os espanhóis decidiram contra Aznar com os olhos na inserção do país na ordem internacional, optando claramente por romper o alinhamento da Espanha com os Estados Unidos.

Houve gente que viu nessa reação dos espanhóis uma vitória da Al Qaeda. Mas, de fato, ela foi apenas a atualização política de um sentimento já expresso na época da invasão do Iraque, quando cerca de 90% dos espanhóis se opuseram à iniciativa de Bush, Blair e Aznar.

Na França, a questão é outra: é principalmente interna. Chirac foi o principal opositor do presidente norte-americano na invasão do Iraque, pelo que angariou simpatia dentro e fora do seu país. Mas a gestão Chirac-Raffarin tem acumulado uma série de medidas administrativas e econômicas antipopulares (pois anti-sociais) e não está conseguindo conter o desemprego. Por isso, espera-se que Chirac, Raffarin ou o novo primeiro-ministro mudem agora a tônica de seu governo, insistindo no "social" para conseguirem sobreviver depois do furacão esquerdista que passou pelo país.

A diferença entre as eleições na Espanha e na França predomina, mas há traços comuns entre elas que merecem ser considerados.

Em ambas, houve uma significativa baixa da abstenção, demonstrando um retorno à política, ou ao menos às urnas, por grande número de eleitores. A redução da abstenção e a consequente vitória da esquerda pode indicar que foram os eleitores desta tendência que abandonaram as urnas, por indiferença política ou por terem perdido a confiança nos partidos de esquerda tradicionais. Eles podem estar retornando a esses partidos, por pragmatismo político, depois de verificarem que as pequenas chapas de esquerda não conseguem afrontar as poderosas direitas constituídas no continente europeu. Além disso, muitos devem ter concluído que a abstenção é uma péssima arma política.

Resta, agora, à esquerda tradicional, sobretudo socialista saber constituir um discurso, um programa e uma prática à altura desta nova demanda --o que não será fácil, como já tive a oportunidade de observar em outra coluna.

Curiosamente, nessa nova maré histórica, mais do que uma conquista, a vitória das esquerdas tão alquebradas parece resultar de um enorme esforço dos próprios eleitores para empurrarem socialistas, comunistas ou verdes de qualquer jeito para o poder.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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