Pensata

Alcino Leite Neto

26/04/2004

A guerra brasileira permanente

Fatos e dados recentes, como os que mostram que 600 mil pessoas foram assassinadas no Brasil nos últimos 20 anos, permitem dizer que vivemos num dos países mais violentos do mundo. É hora, portanto, para quem já não o fez, de rever a fantasia nacionalista propagada há décadas de que o Brasil é um país habitado por gente de índole pacífica e pacificadora.

Na verdade, não somos um agrupamento de anjos brejeiros instalados nos trópicos. Insistir nessa idealização é alimentar falsa consciência a respeito de nós próprios. Brasileiros são também capazes de massacres coletivos. Decepam cabeças e as exibem sadisticamente. Despejam corpos sobre caminhonetes como se fossem sacos de lixo. A crueldade das nossas metrópoles tem raros equivalentes no mundo, pela constância da violência, pela extensão do medo, pela maneira como a depreciação do outro e da vida vai impregnando os espíritos em todas as classes sociais.

Muita gente, a fim de criar imagens midiaticamente impactantes, comparou a situação da violência no Brasil à guerra do Iraque ou a uma guerra civil. É preciso definir as diferenças. Estivéssemos em guerra e teríamos um inimigo declarado, que um dia venceríamos, ou que nos venceria. Estivéssemos em guerra civil, o país estaria dividido em dois blocos nitidamente definidos --e um deles, mais cedo ou mais tarde, seria derrotado.

Se vivemos em estado belicoso, nossa condição é diferente das guerras formais e das guerras civis. É uma situação muito mais perversa: somos protagonistas de uma guerra permanente, informal e insidiosa, multiplicada em numerosos confrontos, que podem ocorrer em qualquer esquina, quando menos se espera. Uma guerra cotidiana, sem prazo para acabar, cuja razão e origem temos agora dificuldade de apreender e que implantou um presente paranóico e sem perspectivas. Uma guerra à qual, superprotegidos e impotentes, vamos ajustando os nossos hábitos, como se não pudéssemos pensar noutra vida exceto a desta catástrofe.

Foi nisso que deu a longa história brasileira de esconder, violentamente, atrás da porta os conflitos essenciais do país, ou evitá-los com "jeitinhos" e outras atitudes diminutivas, ou simplificá-los emocionalmente, ou metaforizá-los em excesso --modos, enfim, de nos desviarmos da racionalidade dos confrontos e da necessidade de buscar para eles soluções objetivas e responsáveis.

Não serão apelos sub-humanistas que agora darão fim à guerra permanente no país. É preciso dizer, infelizmente, o quanto há de violento no próprio sentimentalismo brasileiro e na maneira como disfarçamos com ele a nossa má consciência.

LIVROS: PERSE E DEGUY

Dois importantes poetas franceses, de diferentes épocas, acabam de ganhar excelentes traduções e edições no Brasil: Saint-John Perse e Michel Deguy.

De Saint-John Perse (1887-1975), uma das grandes vozes da poesia européia do século 20, Nobel de Literatura em 1960, foi lançado o estupendo "Amers", poema complexíssimo, traduzido como "Marcas Marinhas" na versão primorosa de Bruno Palma para a Ateliê Editorial.

É também de alto nível a tradução que Paula Glenadel e Marcos Siscar fizeram de mais de 50 poemas de Michel Deguy (1930) na antologia "A Rosa das Línguas", editada pela 7 Letras e a Cosac & Naif.

Deguy é um dos poetas contemporâneos que é preciso ler e reler. Ele forma com Jacques Roubaud e Yves Bonnefoy a trinca de ouro da poesia francesa atual.

"Desmentindo o refrão jornalístico de que a literatura francesa está em crise, uma produção de surpreendente vitalidade, lúcida e interrogadora, mostra que em 'crise', felizmente, desde Mallarmé pelo menos, está a literatura de maneira geral, vivendo a experiência do conflito na proximidade da decisão crítica ('krinein') e estabelecendo seus interesses nas margens que a distinguem e colocam em perigo", escreve Siscar a respeito desses poetas em seu ótimo (e militante) prefácio à coletânea de Deguy.

Os dois lançamentos são verdadeiros acontecimentos editoriais e demonstram o grau de excelência da tradução brasileira de poesia. Aguardemos agora uma bela edição da obra de Roubaud, que é, dos três poetas franceses citados, o mais fascinante.

MAIS LIVROS: FAULKNER

A Cosac & Naif vem promovendo uma formidável redescoberta de William Faulkner (1897-1962) no Brasil, autor seminal do século 20 que ficou um tanto esquecido no país nos últimos anos, de tal modo estávamos ocupados com as ondas pós-modernistas.

No ano passado, a editora lançou "Palmeiras Selvagens" (1939) e agora publica "O Som e a Fúria" (1929), em tradução de Paulo Henriques Britto. O próximo a sair é "Luz em Agosto", para mim a obra-prima de Faulkner. É um desperdício passar por esta vida sem ler os três livros.

"O presente de Faulkner é catastrófico por essência: é o acontecimento que se lança sobre nós como um ladrão, enorme, impensável --que se lança sobre nós e desaparece. Para além deste presente não há nada, pois não existe o futuro", escreveu Sartre, um dos principais divulgadores de Faulkner na Europa, a respeito de "O Som e a Fúria" --palavras do filósofo redigidas em 1939 e que guardam até agora uma incrível atualidade.

Mas o retorno de Faulkner às livrarias brasileiras merece, por si mesmo, toda uma "pensata". Fica para outro dia.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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