Pensata

Alcino Leite Neto

09/05/2004

Vontade política ergue União Européia

Brasileiros, vivendo num país continental, cujos conflitos não são há muito tempo exatamente territoriais, todos nós temos certas dificuldades para entender o significado histórico da unificação da Europa.

Em processo desde meados do século 20, a União Européia agora contém 25 nações, depois que agregou no último dia 1º de maio mais 10 países, a maioria deles do Leste: Polônia, República Tcheca, Hungria, Eslováquia, Lituânia, Letônia, Eslovênia, Estônia (os outros dois foram Chipre e Malta, no Mediterrâneo).

Trata-se de um trunfo político extraordinário, sobretudo se se considera que há pouco mais de 15 anos esses países do Leste estavam sob o controle da URSS comunista e que eles viveram alheios à experiência democrática durante boa parte de sua história, antiga e recente.

Mais do que isso, no corredor dramático entre Ocidente Oriente onde estão situados, alguns dos países só há pouco puderam se constituir como Estados modernos propriamente ditos, de tal modo foram pressionados e dominados política e militarmente ao longo de séculos pela Rússia, por um lado, e pelas nações do Oeste (como a Alemanha), por outro.

É certo que estarão de agora em diante cada vez mais sob o controle da burocracia geral da UE, sediada em Bruxelas, que lhes ditará regras e programas econômicos, e mais tarde de uma Constituição européia, que determinará a estrutura política supranacional. Mas esta e aquela não privarão os países de sua autonomia.

A incorporação à UE tem a característica de ser uma opção feita livremente pelos países e que lhes preserva as características e os interesses nacionais de fundo --ou seja, dos povos que constituem essas nações. Os países podem, inclusive, optar por se desligarem da União Européia no futuro, caso prefiram.

O impacto original da União Européia é justamente este: projetar-se além do Estado nacional sem descartá-lo, ao menos por enquanto. A UE coloca sob um mesmo teto político, jurídico e econômico nações que se disputaram ferozmente na história, sem pretender uniformizá-las.

Se um dia a UE superar o Estado nacional, isso ocorrerá ao cabo de um longo processo de trocas de todos os tipos, quando já se terá constituído uma mentalidade européia que selaria ao mesmo tempo o fim de rivalidades antiqüíssimas no continente.

A necessidade de uma grande Europa está ligada, sem dúvida, ao novo modo de expansão do capitalismo em nossa época, que precisa abocanhar gigantescos mercados transnacionais e, para tanto, necessita implementar uma produção hipermaciça e competitiva. Se a Europa não se organiza como um bloco comercial coeso, como poderão a Alemanha e a França, apesar de sua força econômica atual, enfrentar no futuro a competição com a China, por exemplo?

Citei a Alemanha e a França, e muita gente se pergunta se esses países, bem como a Itália, a Espanha e alguns outros, não seriam os grandes beneficiários da unificação européia, enquanto as pequenas nações do Leste se manteriam economicamente periféricas (a soma do PIB das dez nações que aderiram agora à UE é igual a 4% do PIB dos 15 países que já eram membros).

Possivelmente isso ocorrerá, mas de qualquer forma é para elas uma decisão mais vantajosa se aliarem ao bloco europeu do que ficarem alheias a ele. São conhecidas as benesses que a adesão à UE trouxe para Portugal e Grécia, países de economia miúda.

Os jornais ressaltaram nos últimos dias, com procedência, as tremendas dificuldades econômicas que perpassam a UE. Mas é preciso perceber a importância política, geopolítica e cultural da unificação, ainda mais entre nós, tão viciados que estamos no Brasil com a hegemonia do discurso financeiro sobre os demais discursos e tão abismados que vivemos com a impotência do governo petista.

Se a sobrevivência econômica está no horizonte de longo prazo da UE, no curto prazo é a vontade política que ergue o projeto de confederação. Há forças políticas e culturais igualmente importantes agindo na criação da União Européia, e são elas que sustentam a decisão de países tão desiguais de se ajuntarem uns aos outros, enfrentando todo tipo de dificuldades atuais.

Europa-babel

Com a chegada de 10 novos estados-membros, a União Européia passa a ter em torno de 455 milhões de habitantes. "União na adversidade", prega um dos slogans da confederação européia. Mas a variedade linguística na Europa é tanta que complica enormemente a organização da burocracia da UE.

O site da União Européia tem agora versões em vinte línguas (http://europa.eu.int/). Vinte línguas passaram a ser faladas nos escritórios de Bruxelas, que empregam cerca de 4.000 tradutores e intérpretes. "A língua oficial da Europa é a tradução", afirmou certa vez Umberto Eco.

As línguas oficiais da UE, de fato, são o inglês, o francês e o alemão. Mas os países do Leste, que têm optado pelo inglês como segundo idioma, engrossaram o número de anglófonos na organização. É bastante provável que o inglês se imporá, ironicamente, como o esperanto da nova Europa. E que a França e a Alemanha, países tão centrais na economia da UE, sejam obrigadas a aceitar um destino tão periférico para seus idiomas quanto o que foi reservado ao húngaro ou ao letão.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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