Pensata

Alcino Leite Neto

26/07/2004

Eu bebi a Mecca-Cola

Estava passando pela praça de Catalunya, em Barcelona, quando vi um conjunto de grandes tendas brancas. Entrei numa delas. Era uma espécie de mercado mambembe, com prateleiras de madeira exibindo produtos de embalagens austeras. A tenda era uma loja de "comércio justo".

O que é isso? "É uma forma alternativa de comércio que busca alcançar relações comerciais mais equânimes entre os países ricos do Norte e os países pobres do Sul do planeta". Assim estava escrito na sacola onde colocaram minha compra.

A explicação ao consumidor continuava, na mesma sacola de papel reciclado: "O comércio justo leva em conta valores éticos e de meio ambiente, em confronto com critérios exclusivamente econômicos do comércio tradicional, e se baseia nos seguintes princípios: preço justo que cubra o custo da produção dos artigos; retribuição digna pelo trabalho; respeito pelos direitos humanos e trabalhistas; erradicação da exploração infantil; benefícios sociais para as comunidades produtoras; respeito pelo meio ambiente".

Nas prateleiras, havia uma vasta quantidade de alimentos: cereais, cafés, chás, chocolates, biscoitos etc. Nas embalagens, não constava nome de marcas, nem os apelos próprios da publicidade capitalista. Destacavam-se as palavras que definiam a mercadoria, como "café", e uma explicação a respeito da sua procedência, de quem o produziu e em que condições.

Os produtos do "comércio justo" são em geral resultado do trabalho de comunidades organizadas em regiões pobres do planeta, de onde são transportados para os centros mundiais do capitalismo, como Barcelona, por ONGs e associações políticas.

Comprar no "comércio justo" é uma nova tendência na Europa, sobretudo entre os jovens. Alimentam a nova onda a crescente preocupação ecológica, a aversão à manipulação química e genética dos alimentos, o incômodo com as desigualdades sociais e certa atitude de rebeldia presumida no ato de consumir um produto que atravessou o mundo sem passar pelas mãos das cinco ou seis grandes megacorporações que dominam o mercado mundial de alimentos.

Uma tenda assim, como a de Barcelona, é quase o oposto de um supermercado comum, apesar de imitar um pouco o seu formato. Quando vamos a um supermercado, pensamos exclusivamente em nossas necessidades, nossos gostos, status e superstições, e raramente questionamos socialmente os produtos.

Quando entramos na loja do "comércio justo", ao contrário, é preciso um grande esforço para relacionar nossas demandas pessoais com a mercadoria ali exibida. É como se, a cada vez que apanhássemos um produto, estívessemos desmontando mentalmente a cadeia produtiva e criando um elo social com grupos humanos muito distantes de nós e nos comprometendo com um novo modo (quase utópico) de comércio, de produção de bens e de vida. Não é fácil.

Eu queria apenas um chocolate. Fui então à prateleira específica. Não conhecia os produtos, portanto não tinha preferência por nenhum deles, todos me pareciam iguais, embora de procedências muito diversas. Li cada uma das descrições nas embalagens, que com suas cores em tom pastel evitavam qualquer apelo ao exotismo. As descrições contavam detalhes da origem da mercadoria e de sua produção: um dos chocolates fora feito por índios dos Andes, outro, por uma comunidade no interior da África, e assim por diante.

Pensei que todas aquelas barras de chocolates talvez tivessem o mesmo gosto insípido, sem a tradição dos produtos belgas ou suíços, nem a alquimia futurista das marcas superpopulares que rodam o planeta. Enganei-me. O chocolate da comunidade andina, um moka, era delicioso, dos melhores que já experimentei. Seria então possível conciliar o prazer individual com o compromisso social? Foi o que me perguntei, ao jogar a embalagem vazia no lixo.

Entrei em outra tenda. O "comércio justo", expressão que ainda me parece conter um paradoxo, havia me seduzido. Em vez de procurar por marcas renomadas, eu iria agora me aventurar entre produtos vindos de regiões desconhecidas, esperando que meu dinheiro fosse parar nas mãos de quem mais precisava, e não no cofre das multinacionais.

Estava com sede e queria um refrigerante. E eis que avisto uma garrafa muito parecida à da Coca-Cola, com um rótulo que explodia em cores (vermelha e branca) no meio daqueles produtos de embalagens frias. A garrafa colorida era da Mecca-Cola, a anti-Coca-Cola muçulmana.

Mas o que estava fazendo ali, na tenda de alimentos politicamente corretos, a Mecca-Cola? Afinal, a produção de qualquer cola demanda uma série de colorantes artificiais, de acidificantes, de toda uma parafernália química e antiecológica. E, além disso, a Mecca-Cola não é feita por uma coletividade pobre nos cantos da Terra, mas por uma empresa comum, sediada na França, de propriedade de um muçulmano, que aspira conquistar capitalisticamente o mercado árabe e o gosto alternativo mundial. Foi o que falei à balconista, tentando lançar a ela uma provocação definitiva.

Ela me olhou espantada, mas tinha a resposta na ponta da língua. "É uma exceção que abrimos, pois a empresa que faz a Mecca-Cola doa parte de sua renda para trabalhos sociais." E me mostrou o rótulo na garrafa, que dizia, em inglês (e em árabe): "10% - caridade local" (segundo um site, destinados a crianças palestinas).

Não me convenceu. Não que eu suspeitasse da doação. Mas, de repente, a tenda de "comércio justo" adquiriu para mim uma atmosfera ideológica antiquada, ao fazer concessão a um produto organicamente incorreto e empresarialmente convencional apenas para afrontar um dos mitos do capitalismo norte-americano.

"Quer dizer então que, se a Coca-Cola passasse a doar 10% de sua renda à caridade, vocês começariam a vendê-la também?", perguntei à mocinha, que me olhou sem respostas, com algum desprezo, depois de receber os 2 euros (quase R$ 8,00) por minha garrafa de um litro e meio de Mecca-Cola.

Estava louco para experimentar esse refrigerante, de que ouvira falar tantas vezes. Imaginava que ele traria ao paladar certas reminiscências orientais, pré-capitalistas, mescladas ao sabor moderno da Coca-Cola _criando assim uma síntese líquida, que, num só gole, resolveria o problema do "choque de civilizações" formulado por Samuel Huntington.

Que nada! A Mecca-Cola tinha o mesmo sabor desses genéricos de cola que existem nos supermercados populares brasileiros. Não era ruim, mas era desprovida de qualquer novidade ou originalidade, seja no gosto, seja na embalagem, bastante imitativa, exceto por alguns escritos em árabe e pelos slogans políticos que exibia.

"The taste of freedom!" (o gosto da liberdade) era uma das frases estampadas no rótulo da garrafa. "Não beba mais como um idiota, beba como um engajado" era a outra frase, uma estranha mescla de apelo publicitário com slogan situacionista.

Mas "engajado" com o quê? Não está claro. Não importa. A Mecca-Cola, apesar de seu gosto trivial, é um extraordinário produto desta época: ela é a confirmação de que a ideologia está se transformando em marketing, de que os sujeitos políticos estão se transfigurando em consumidores auto-críticos e de que o antiamericanismo é apenas um estágio avançado do próprio capitalismo.




NA COLA DO FUTURO

A Mecca não é a única cola que surgiu nos últimos anos para enfrentar o império da Coca. Logo depois da invasão do Iraque pelos EUA, apareceu na Turquia a Cola Turka, lançada em meio a uma tentativa de boicote nacional aos produtos americanos. Era produzida pelo filho de um primeiro-ministro, rival do primeiro-ministro anterior, que por sua vez era o distribuidor local da Coca-Cola.

Na China, por sua vez, a Feichang Kele (Cola Extraordinária) luta bravamente contra o predomínio da Kekou Kele (Cola Deliciosa), nome local da Coca-Cola, que domina 24% do mercado de refrigerantes no país. No último mês, os chineses contra-atacaram no próprio território norte-americano, desembarcando nos EUA 170 mil garrafas da Feichang Kele, mas com o nome ocidentalizado de Future Cola.




ENQUANTO ISSO, EM NOVA YORK.

A Coca-Cola colocou seu primeiro grande cartaz na Times Square, em Nova York, em 1920. Em 1923, foi a primeira empresa a utilizar néon para iluminar uma publicidade no local. No último dia 1º, na mesma Times Square, a Coca-Cola inaugurou um anúncio gigantesco que está sendo considerado a combinação mais avançada já realizada entre alta tecnologia e publicidade de rua.

A "escultura-anúncio" como a empresa qualificou o empreendimento, parece um néon incrementado (veja em http://www2.coca-cola.com/presscenter/img/lg_photo_coke_rhinestone.jpg). Mas é muito mais que isso: seria a primeira publicidade a utilizar tela de plasma, de alta definição (com 900 mil pixels), e também permitir a interatividade. A razão primordial do néon high-tech é anunciar a nova Coca-Cola C2, que tem a metade das calorias e dos carboidratos da Coca clássica.

O anúncio da Times Square pesa 30 toneladas e custou US$ 6,5 milhões. O valor é alto, mas não deve ter assustado muito a Coca-Cola Company, que vende 1 bilhão de refrigerantes por dia em 200 países.




CAMPER E A COMIDA HIPERMODERNA

Um dos lugares mais interessantes de Barcelona atualmente é o restaurante que a companhia Camper abriu há poucos meses na badalada calle Elisabets (nº 9). Chama-se Camper Food Ball.

A Camper é uma famosa fábrica espanhola de sapatos, com três milhões de pares vendidos por ano --70% fora da Espanha. São sapatos de feitio rústico, mas de talhe e acabamento ousados, que viraram mania entre a juventude do Primeiro Mundo. Agora, a empresa resolveu abrir uma rede de restaurantes e outra de hotéis (Casa Camper).

O primeiro restaurante inaugurado foi este de Barcelona. A decoração e a comida do local repetem o estilo rústico/vanguardista da marca Camper. Todos os pratos têm o formato de bolas (daí o nome do restaurante: "food ball") e são feitos sempre de arroz misturado a ingredientes e temperos naturais --não se usa carne vermelha ou açúcar refinado, nem produtos transgênicos ou com aditivos químicos.

O freguês é servido numa bandeja de madeira, no balcão, e vai se sentar em bancos também de madeira, dispostos como uma pequena arquibancada. As bolas de arroz são bastante saborosas. Tudo é muito informal, mas ao mesmo tempo de uma elegância bastante peculiar, pela originalidade do restaurante e pelo tipo de gente que ele atrai.

O Camper Food Ball é um novo conceito de alimentação, o começo do fim dos velhos restaurantes macrobióticos e naturalistas, cuja culinária lhe serve de inspiração. Ele converte as austeras comidas organicamente corretas em entretenimento gastronômico e luxo hipermoderno.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca