Pensata

Alcino Leite Neto

09/08/2004

O slogan "comunista" de John Kerry

Na próxima terça-feira, dia 10, chega às livrarias americanas uma curiosa coletânea de poemas: "Let America Be America Again" (Vintage Books). Seu autor é James Langston Hughes (1902-1967), um dos principais nomes da poesia negra norte-americana. O prefaciador do livro é o candidato democrata às eleições presidenciais deste ano, John Kerry.

"Let America Be America Again" (Deixe a América ser a América de novo) é o título de um famoso poema de Hughes, de 1938. É também o slogan da campanha de Kerry --uma escolha polêmica, que fez a poesia entrar no debate político do país.

A direita e os comentaristas de jornal nos EUA estão se divertindo com o fato de Kerry ter destacado para slogan o verso de um poema que, no conjunto, é um ataque ao sonho americano. E, além disso, por ele andar citando e ter resolvido prefaciar um poeta que foi comunista, que passou um ano na URSS em 1932 e esteve na mira do mccartismo nos anos 50.

"Deixe a América ser a América de novo...

(A América nunca foi América para mim)...

(Nunca houve igualdade para mim,

Nem liberdade nesta 'pátria de homens livres')..."

Eis alguns versos desse poema aflito, que não apenas expõe a revolta do negro americano, mas também pretende falar em nome dos índios, dos imigrantes, dos pobres, de todos os marginalizados pelo capitalismo (leia o poema em inglês ).

Muitos estão agora curiosíssimos para ler o prefácio de Kerry e ver como ele fez para driblar o lado desconfortável de Hughes, que além disso foi ateu e um devoto stalinista, como deixou claro em outros versos:

"Adeus

Cristo Jesus, Senhor Deus Jeová,

Caia fora daqui agora.

Dê lugar a um novo sujeito sem religião --

Um sujeito verdadeiro chamado

Marx, Comunista Lênin, Camponês Stálin, EU trabalhador".

As poucas linhas já divulgadas do prefácio de Kerry revelam sua preocupação em inserir Hughes no período da Depressão econômica (anos 30), que lançou milhões de norte-americanos na miséria, e alertar que os negros ainda não haviam conquistado inteiramente seus direitos civis quando foi escrito "Let America Be America Again". Quem leu o prefácio inteiro afirma que Kerry faz uma abordagem "higiênica" do poeta, evitando tocar na sua inclinação comunista.

A polêmica revela como o comunismo permanece um tabu nos Estados Unidos --e mais ainda as relações que no passado intelectuais, artistas e lideranças políticas norte-americanos mantiveram com o país de Stálin.

Poeta, novelista, dramaturgo e ensaísta, Hughes foi um dos principais nomes da Harlem Renaissance, o primeiro grande movimento de afirmação aberta da cultura negra americana (auge entre os anos 1920-30) e que revelou vários talentos em todas as áreas --na literatura, no teatro, na música, na dança e na pintura.

Hughes nasceu em Joplin, no Estado de Missouri, uma região violentamente racista. Viveu um ano na cidade do México, quando jovem. Depois, foi à África e à Europa. Em 1926, publicou seu primeiro livro de poesia, "The Weary Blues". Em 1932, foi à URSS com um grupo de negros, convidados para participar de um filme que nunca chegou a ser realizado. Decidiu permanecer por lá, percorrendo o país durante um ano.

Ao retornar aos EUA, estreitou seus laços com o Partido Comunista norte-americano e fez forte militância na imprensa, inclusive no "New Masses", publicação do CPUSA (Communist Party of United States of America). Em 1953, foi chamado a depor pelo Comitê de Atividades Antiamericanas. Seu interrogatório é muito interessante e merece ser lido (a transcrição em inglês está no vol. 2, págs. 68 a 93, em http://www.gpo.gov/congress/senate/senate12cp107.html). Eis um trecho:

"Roy Cohn (conselheiro-chefe): Você escreveu isto: 'Coloque um S a mais em USA para fazê-los soviéticos. Os USA, quando tomarmos o controle, será então USSA'?

Hughes: Sim, senhor, eu escrevi isso".

Apesar de tudo, Hughes afirmou à comissão que não era comunista, que nunca pertencera ao partido e que seu entusiasmo por Marx e Lênin era coisa do passado --e parece que convenceu os seus inquisidores.

Igualmente incômoda para o mundo americano tem sido a sexualidade de Langston Hughes --que morreu solteiro. Explícito em seu marxismo, o poeta cercou sua vida sexual com uma fronteira de mistério. Não são poucos os ativistas gays que tentam encontrar provas do seu homossexualismo, mas as buscas até agora foram em vão.

A inclassificável sexualidade do poeta chegou a ser motivo de um filme para a TV inglesa, "Looking for Langston" (À Procura de Langston, 1989), do diretor britânico negro Isaac Julien. Quem sabe no futuro alguém se interesse também pela mais comovente e atribulada vida política e artística de Hughes, que um dia foi chamado de "Shakespeare do Harlem".

O PC ADERE A JK

O Partido Comunista dos Estados Unidos da América (CPUSA) divulgou seu apoio ao candidato democrata John Kerry. Em seu site, os comunistas americanos apresentam dez razões para não votar em George W. Bush:

1. Bush está destruindo os direitos dos trabalhadores

2. Bush está privatizando o sistema de saúde, de segurança social e a educação pública

3. Bush está levando o governo federal à bancarrota

4. Bush está fazendo os ganhos em direitos civis recuarem

5. Bush está encurtando os direitos das mulheres

6. Bush está abusando de trabalhadores imigrantes

7. Bush está explorando e arruinando o meio ambiente

8. Bush e sua guerra no Iraque é um desastre para nossa segurança e nossa economia

9. Bush está negando as liberdades civis e o direito à livre expressão

10. Bush discrimina gays e lésbicas
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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