Pensata

Alcino Leite Neto

24/08/2004

"O Grito" e outros gritos mudos

Ladrões mascarados roubaram sem muita dificuldade, em Oslo, dois quadros notáveis do pintor norueguês Edvard Munch: uma das versões do famoso "O Grito" (1893) e outra de "Madona" (1894).

A versão roubada de "O Grito", de 91 cm por 73 cm, é considerada uma das melhores das quatro representações do mesmo tema feitas pelo artista.

Uma outra, menos alcançada, está nas reservas do Museu Munch, onde ocorreu o roubo. Há ainda uma versão em coleção particular. E mais um "Grito" está exposto na Galeria Nacional de Oslo. Este também já foi objeto de um roubo, em 1994, cometido por um jogador de futebol da Noruega, Paal Enger, que acabou condenado a seis anos de prisão.

Em 1996, a versão agora roubada de "O Grito" esteve no Brasil para ser exposta na 23ª. Bienal de São Paulo, que fez uma sala especial com 37 pinturas de Munch. Uma versão de "Madona" também já veio ao país, para a 2ª Bienal, em 1956, onde foram igualmente apresentadas dezenas de obras do artista, inclusive os famosos retratos de August Strindberg e de Stephane Mallarmé.

"O Grito" é um dos fetiches da arte ocidental. Não apenas é uma obra importante para a história da pintura, mas também para o imaginário do século 20 --a tal ponto, que virou um clichê da cultura de massa e acabou citado até no filme de terror "Pânico", de Wes Craven, de 1996 (a máscara do assassino é uma versão paródica do quadro).

Munch (1863-1944) descreve em seu diário o sentimento que o levou a realizar "O Grito", quando passava pelos arredores do parque Ekebert, em Oslo (cidade que então se chamava Cristiânia): "Acima do fiorde azul escuro havia ameaçadoras nuvens vermelhas como sangue e como línguas de fogo. Meus amigos se afastavam e, sozinho, tremendo de angústia, eu tomei consciência do grito infinito da natureza".

É interessante que, para Munch, o grito ele mesmo seja da natureza, e não do indivíduo. Habitualmente, vemos esta pintura como o grito de um sujeito que se irradia por todo o quadro, e não o contrário: o grito da natureza que toma conta do indivíduo. Este é um dos grandes mistérios da tela --sujeito e natureza se enovelam numa mesma trama aflitiva de formas, linhas, traços e cores. Desfaz-se os limites entre a subjetividade e o mundo exterior, e estão ambos implicados na visão do artista de uma natureza torturante. Ver esta tela apenas como retrato da angústia individual é portanto vê-la pela metade.

Não é raro termos representações de um grito na pintura ou na escultura --os historiadores de arte podem recordá-las melhor do que eu faria. Mas isso não quer dizer que tenha sido fácil para os artistas decidirem por representar esta emoção que exige tremenda exacerbação dos traços físicos.

Representar ou não um grito está mesmo no centro de uma discussão fundamental da história da estética, desenvolvida pelo pensador e dramaturgo alemão Gotthold Lessing, um dos pais do Romantismo.

Em "Laocoonte: Um Ensaio sobre os Limites da Pintura e da Poesia" (1776), ele se pergunta por que uma certa escultura grega (do século 1 a.C.) não representa o mitológico Laocoonte gritando de dor ao ver seus filhos mortos por uma serpente, tal como o descreve Virgílio, na "Eneida", ao dizer que ele "gritava como um touro".

Lessing conclui que o artista grego trocou o grito por um simples gemido não porque aquele indicaria uma inferioridade de caráter de Laocoonte, mas para impedir que o personagem fosse transformado numa imagem repulsiva (e portanto menos bela) pela "violência deformadora" do grito.

A partir da escultura grega de Laocoonte, Lessing está refletindo, como diz o título do seu livro, sobre os limites da pintura e da poesia, que por séculos se julgou terem propósitos equivalentes. Para Lessing, a poesia pode fazer Laocoonte gritar, pois ela não faz uma representação direta das coisas, mas sim por meio de palavras. A pintura, ao contrário, exige a contenção das formas, pois seus meios de representação são iguais àquilo que é representado.

Munch, de certa forma, liberta o grito na pintura, assumindo inteiramente a "violência deformadora" que ele produz no personagem representado e, por consequência, no próprio quadro. Já estamos no alvorecer da arte moderna --e do trágico século 20. "O Grito" de Munch abre caminho para os gritos de "Guernica" (1937), de Picasso, para o "Eco de um Grito" (1937), de Siqueiros, para os gritos nas pinturas de Francis Bacon e vários outros.

Os gritos "mudos" das pinturas guardam um pouco estudado parentesco com os gritos do cinema mudo. A ausência do elemento acústico no grito cinematográfico aproxima este, em alguns casos, de uma qualidade expressiva que só foi obtida pela pintura. É como se a apresentação do grito sem som intensificasse o que há de irrepresentável na dor ou na angústia.

Talvez por isso mesmo Francis Bacon tenha se interessado em recriar um personagem de Eisenstein em "Estudo para a Enfermeira do Filme 'Encouraçado Potemkin'" (quadro de 1957), enfatizando seu grito no filme. Não é o único grito nas telas do pintor britânico. Para Bacon, pintar personagens que gritam chega a ser mesmo um modo de reescrever a história da arte, como se ele estivesse libertando uma expressão reprimida. Foi o que fez, por exemplo, na sua versão do retrato do papa Inocencio 10, de Velázquez, cujo rosto ele tira da vetusta serenidade para estampar com um grito sombrio.

Bacon certamente se entusiasmaria, se tivesse visto, com o filme "Limite" (1930), de Mario Peixoto, que tem um dos gritos mais extraordinários do cinema mudo, o do personagem Raul. Grito que, de início, parece um simples apelo, mas que as circunvoluções da câmera pelo rosto do personagem e pela paisagem em torno vão transformando em aflitiva imagem da prostração existencial e da solidão metafísica. Esta cena foi até agora o que o cinema pôde realizar de mais próximo da visão alcançada por Munch em sua obra-prima.

Com o cinema falado, perdeu-se muito da dimensão sublime do grito que havia no filme mudo. Devido ao recondicionamento realista do cinema com a tecnologia do som, poucos diretores enfrentarão artisticamente em seus filmes a expressão de um grito com o seu correspondente som realista.

Um dos que ousaram fazê-lo foi Michelangelo Antonioni, que, sabendo das dificuldades, deu ao seu filme, justamente, este nome: "O Grito" (1957). No filme, a história de um operário italiano, tudo converge para a cena final: um grito trágico de desconsolo e revolta.

Mesmo Francis Ford Coppola, na trilogia "O Poderoso Chefão", optou por tirar o som do grito do personagem de Al Pacino diante do corpo da filha morta, a fim de intensificar, assim, pelo silêncio, a desmesura de seu sofrimento.

Foi o mesmo recurso utilizado numa montagem de "Mãe Coragem", de Bertolt Brecht, dirigida pelo próprio autor da peça e da qual foi feito um registro cinematográfico nos anos 50. Ao final, sozinha, depois de perder todos os filhos, Mãe Coragem (interpretada pela genial Helene Weigel, mulher do dramaturgo) mira a platéia e solta um grito --desesperadamente mudo--, mas menos para exibir sua dor do que para indicar a tardia, e portanto trágica, tomada de consciência do personagem.

Em meio ao burburinho do mundo, aos berros e slogans, espero não ter enfadado demais o leitor com a lembrança destes gritos mudos da pintura e do cinema que buscaram representar o irrepresentável --a dor sem remédio, a tristeza diante da opacidade da vida e o pavor provocado pelo grito infinito da natureza.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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