Pensata

Alcino Leite Neto

05/09/2004

Todos os culpados pela tragédia em Beslan

Quantas pessoas foram feitas reféns por terroristas em Beslan, na Ossétia do Norte? Seriam 500, 600, 1.000, 2.000? Quantas morreram na escola? As primeiras notícias falavam de 100 pessoas, entre adultos e crianças. Depois, ampliou-se o número para 150. Mais tarde, para 200. Depois, para 250. Agora, os cálculos ultrapassam 350. Alguns supõem que sejam mais de 500 vítimas.

Quando se saberá ao certo? Na Rússia, as informações não são seguras. A "Folha" publicou artigo neste domingo que narra como a TV do país, amplamente controlada pelo governo de Putin, abordou o assunto de maneira enviesada, evitando transmitir ao vivo reportagens sobre a tragédia. Com a imprensa escrita russa, a situação não é melhor: boa parte dos jornais está à mercê da vontade do governo.

A situação toda está cercada de informações confusas, de interpretações apressadas. As pessoas se perguntam de quem é a culpa por tantas mortes, sobretudo de crianças. É evidente que os terroristas são os responsáveis, mas é também responsável o governo de Putin, que não soube encontrar uma saída para o impasse.

Haveria uma saída menos sangrenta? perguntam alguns. Talvez sim, fosse ela uma ação militar melhor calculada contra os terroristas, fosse ela a negociação. Conceder aos terroristas não indicaria fraqueza do Estado russo? indagam outros. De fato. Mas é justo expor tantas vidas à lógica de Estado?

A imprensa européia (inglesa, francesa e espanhola) ressalta como o massacre ocorrido demonstra a inabilidade do governo de Putin para prevenir (e lidar com) o avanço do terrorismo em seu país --recentemente, dois aviões foram também alvos de atentados; no ano passado, uma tragédia aconteceu num teatro em Moscou.

A questão da independência da Tchetchênia vai se transformando, a passos largos, em algo ainda mais complicado de resolver. A prolongada insatisfação dos independentistas com soluções diplomáticas, a prepotência com que Putin dirige a questão, a ocupação cruel dos russos, acabaram por levar guerrilheiros tchetchenos a se ligarem ao terrorismo internacional, especificamente o de origem islâmica e fundamentalista.

Os guerrilheiros tchetchenos aspiram à independência de seu país, mas esses terroristas que a eles se coligaram não têm fronteiras. Onde quer que exista ambiente para eles agirem, lá comparecerão. Eles inflamam de conteúdo escatológico e religioso os problemas políticos seculares --até o ponto de tornar estes inabordáveis e, portanto, praticamente insolúveis, mesmo por meio de uma revolução popular.

Seu objetivo não é uma revolução, segundo os modelos da história moderna do Ocidente. Eles não pensam como o Ocidente, nem pensam dentro da modernidade, mas num plano extra-moderno. A história, para eles, não é construção dos homens, mas profecia. Cada ato de terror manifesta a promessa profética. Não existe negociação possível na esfera terreal ou histórica, pois a vitória já está dada pela fé. Os infiéis já perderam no plano divino. Todo aquele que se sacrifica será recompensado, mesmo que seja no além-do-mundo --na morte, o paraíso.

É muito difícil lidar com gente assim. E é provável que o mundo ainda tenha que sofrer as conseqüências desse terrorismo ao longo de muitas décadas.

Um dos modos realistas de contê-lo --antes que se consiga uma ampla modernização do mundo árabe--, é gerir com rapidez e justiça litígios políticos e territoriais em regiões propícias à proliferação de tal terrorismo. É o que não tem sabido fazer Putin, com sua "mão-de-ferro" e sua ambição expansionista, nas fronteiras complicadas da Rússia, sobretudo naquelas predominantemente muçulmanas.

Outro modo de conter o terrorismo é não abandonar estas regiões, tão logo os conflitos sejam administrados, à sua própria sorte. Freqüentemente pobres e subdesenvolvidas, elas dependem do apoio internacional para sobreviverem e se modernizarem.

São ambas tarefas complicadas, que exigem imenso esforço dos governos e das instituições internacionais. Este é um mundo que agora precisa ser pensado globalmente, como se sabe. Enquanto agirem dentro das limitações do egoísmo nacional e dos interesses mútuos, os países ricos continuarão afetados, imprevisivelmente, por este terrorismo que parasita nas bordas desamparadas do mundo.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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