Pensata

Alcino Leite Neto

30/01/2005

Godard sem dinheiro no Rio

A primeira biografia de Guy Debord, o formidável pensador da sociedade do espetáculo e um dos grandes estilistas da língua francesa no século 20, foi escrita não por um francês, mas por um professor britânico, Andrew Hussey.

"The Game of War - The Life and Death of Guy Debord" (O Jogo da Guerra -Vida e Morte de Guy Debord, ed. Jonathan Cape/Random House) foi publicada em 2002 e é uma reconstrução minuciosa e inteligente da vida do misterioso Debord e da cultura francesa nos cruciais anos 50 e 60.

O diretor Jean-Luc Godard (a quem Debord detestava, conta Hussey) teve nesse período uma importância central, na França e no resto do mundo. Há tempos os admiradores e estudiosos esperavam uma biografia do cineasta. Ela finalmente foi feita _e, outra vez, não por um francês, mas por um historiador inglês.

Escrita por Colin MacCabe, a primeira biografia do diretor de "Acossado" saiu no ano passado nos Estados Unidos e chama-se "Godard - A Portrait of the Artist at Seventy" (ed. Farrar, Straus and Giroud). No velho estilo das biografias anglo-saxãs, o livro é longo e detalhado: alcança 432 páginas, incluindo notas, filmografia e índice.

Com dois exemplos na mão, é o caso de perguntar por que os franceses estariam transferindo aos ingleses a tarefa de escrever as biografias de seus principais artistas e intelectuais contemporâneos (agora me ocorre outro exemplo: a primeira biografia do diretor Jacques Tati foi feita também por um inglês, David Bellos).

A vida de Debord esteve toda ela cercada de segredos e conspirações. A de Godard, ao contrário, parecia-nos bem mais transparente. Ao longo dos anos 60, devido ao impacto de seus filmes e da Nouvelle Vague, a imprensa acompanhou bastante os passos do diretor. A festa divertida de seu casamento com Anna Karina ganhou capa na então superfamosa revista "Paris Match".

Pouco se sabia e pouco se procurava saber, porém, a respeito da infância e juventude de Godard, nascido em Paris em 3 de dezembro de 1930. Também o período de militância política do diretor ficou praticamente na penumbra. MacCabe dedica um bom espaço de sua pesquisa a essas épocas pouco conhecidas _abordando sem peias, inclusive, a compulsão do jovem Godard por praticar pequenos roubos.

Sim, Godard roubou até mesmo a revista "Cahiers du Cinema". Roubou a empresa onde trabalhou. Roubou seu avô, vendendo num sebo as obras autografadas do poeta Paul Valéry, amigo da família. De tanto roubar, acabou na prisão e depois num reformatório.

Não precisava roubar para viver. Por parte de mãe, Godard descende dos Monod, rica e tradicional família da alta burguesia francesa, que nunca aceitou direito o casamento de Odile com o médico Paul Godard, dono de uma clínica no interior da Suíça.

Com o pai, Jean-Luc desembarcou em 1950 nos Estados Unidos e, em seguida, resolveu fazer sozinho uma viagem pela América Latina. Começou pelo Panamá e desceu até o Rio de Janeiro.

O relato da estadia do diretor no Brasil é muito curto na biografia. MacCabe conta apenas que Godard ficou completamente sem dinheiro no Rio e teve que pedir auxílio à Embaixada da França. O próximo jornalista brasileiro a entrevistar o diretor poderia tentar obter mais informações sobre esta estadia.

Sabe-se que, numa crítica a "Orfeu Negro", de Marcel Camus ("O Brasil visto de Billancourt", 1959), Godard demonstra algum conhecimento da vida carioca. No texto, ele reclama que Camus tenha criado um Orfeu que é condutor de bonde, imagem já vista mil vezes em Hollywood, em vez de fazer dele um motorista de lotação, o que seria muito mais realista e poético. "Eu não vi (no filme) o maravilhoso pequeno aeroporto de Santos-Dumont, onde deveriam ter feito Eurídice aterrissar entre o oceano e os arranha-céus", escreve Godard na crítica.

Do Rio, ele foi para Santiago do Chile, onde vivia uma das irmãs de seu pai.

Truffaut contou que a viagem à América Latina mudou Godard radicalmente. Foi a partir dela, segundo Truffaut, que Godard apareceu com seus hábitos de misantropia e prolongado silêncio.

Truffaut, que também já passara por um reformatório para jovens, foi o principal companheiro de Godard no início de sua atividade crítica e cinematográfica. É interessante, por meio da biografia, verificar como ambos se envolveram com a direita francesa quando escreviam na revista "Arts".

Há muito de oportunístico nesse envolvimento. No mundo do pós-guerra, porém, com a França dividida entre simpatizantes do Partido Comunista e direitistas, Godard e Truffaut estavam mais próximos desta ala política que da outra.

Segundo MacCabe, o flerte de Truffaut com a direita terminou no momento em que o diretor leu "Mitologias", de Roland Barthes, publicado em 1957. Truffaut nunca radicalizou suas posições, tornando-se politicamente um liberal de centro. Godard, com o passar do tempo, se transformou no principal diretor da esquerda no cinema.

Muitas vezes, o biógrafo MacCabe tem uma única fonte para ajudá-lo a reconstituir um episódio da vida de Godard, como no caso da viagem à América Latina. Isso enfraquece muito o livro. Mas, quando consegue multiplicar os pontos de vista, enriquecendo a informação, a obra fica mais emocionante.

É o que ocorre com o período da invenção da Nouvelle Vague e do casamento com Anna Karina, ocorrido em 1961 _a melhor parte da biografia.

A formação política de MacCabe (ele foi aluno de Althusser) e o seu conhecimento da cultura européia do período pós-68 ajudam-no a conduzir a parte mais difícil da biografia, a dos anos 70, quando Godard abandonou o cinema comercial para fazer filmes engajados e militantes.

Nesse momento, as questões críticas e políticas se sobrepõem, mas não chegam a sufocar as curiosidades biográficas. MacCabe tem o mérito de conseguir equilibrar notícias da vida privada com a análise crítica, o que torna o livro uma boa introdução ao cinema godardiano. Aí está uma biografia que os editores deveriam traduzir urgentemente no Brasil.

Inferno, purgatório e paraíso da história

"Nossa Música", o novo filme de Jean-Luc Godard, estreou nesta semana em São Paulo. A seguir, tomo a liberdade de publicar uma versão sem cortes da crítica que saiu na "Ilustrada", da "Folha de S. Paulo":

"Nossa Música" é um ensaio cinematográfico de grande força e atualidade, dividido em três partes: inferno, purgatório e paraíso. A divisão parece pretensiosa para um filme de cerca de 80 minutos, e talvez seja, mas ela ajuda bastante o diretor e o espectador a organizarem as imagens e as idéias desta obra sobre a irracionalidade das guerras, a aceitação do outro, o perdão e a reconstrução do mundo e da vida.

O Inferno é uma rapidíssima introdução em que Godard apresenta de maneira frenética uma colagem de imagens das guerras que acometeram o século 20, de ações militares dos Estados Unidos e de filmes famosos de Hollywood e da Europa que abordaram as disputas sangrentas entre os homens.

Surgem imagens _muitas vezes clichês famosos_ de cidades destruídas, explosões, fuzilamentos, pessoas desesperadas, populações sem rumo... Tudo dura cerca de 10 minutos, mas sintetiza com clareza como somos capazes de transformar nosso mundo no pior de todos os mundos.

O Purgatório, a parte mais longa do filme, passa-se em Sarajevo, em 2003, durante os Encontros Europeus do Livro. O próprio Godard participou dos encontros e surge no filme como um diretor de cinema meditativo e questionador. Neste capítulo, documentário e ficção se misturam, e personalidades como os escritores Juan Goytisolo (espanhol) e Mahmoud Darwish (palestino) transformam-se em personagens de "Nossa Música".

A escolha de Sarajevo não é gratuita. A cidade tem papel importante no início e no desenlace da história européia no século 20. É considerada simbolicamente como o local onde começou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, ocorrido ali. E, quando Godard filma em Sarajevo, a cidade ainda está sendo reconstruída dos desastres da guerra da Bósnia (1992-95), o último grande conflito da Europa no último século.

Entre as ruínas da cidade, os cafés e os corredores do Centre André Malraux, onde se realizam os encontros literários, os personagens discutem sobre a crise no Oriente Médio, o poder americano, o destino da Europa, a função da arte. São conversas de pessoas engajadas na vida política do mundo, nada que espante ou incomode o espectador interessado.

Godard exibe essas discussões em entrevistas curtas, diálogos, declarações aforismáticas e cenas muitas vezes absurdas, como a dos índios americanos em plena Sarajevo, enquanto acompanha a enquete de sua heroína, uma jornalista franco-judia, angustiada com os embates entre Israel e Palestina _também uma das preocupações essenciais do filme.

No labirinto polifônico de Godard, o pior espectador é aquele que tenta achar uma história, um sentido, uma verdade, uma saída. As imagens não buscam o uno, mas o diverso, o múltiplo. Elas são abertas, são um todo aberto. No caso de "Nossa Música", trata-se de um rico e complexo conjunto visual e sonoro orientado filosoficamente para a compreensão da guerra e para a formulação de uma ética da convivência humana.

Esta ética, que evoca Rimbaud e Cristo, é inspirada pela idéia de abertura existencial ao outro ("Eu é um outro" é a frase de Rimbaud) e de perdão ativo (a oração do Pai-Nosso é citada no filme: ".como nós perdoamos aqueles que nos ofenderam."). Certamente Godard, que não consta tenha aderido a qualquer igreja, está aqui inspirado pela ética cristã do perdão, mas numa perspectiva política. Alguns reconhecerão neste filme a inspiração dos trabalhos mais recentes dos filósofos Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida.

Por fim, chegamos ao Paraíso, a conclusão breve do filme, em que Godard demonstra sem enrolações tudo aquilo de que o seu cinema é capaz. A jornalista agora caminha por um campo tranquilo em que cruza com jovens que lêem, comem, passeiam, se distraem infinitamente.

É uma vida pacificada, artística, ociosa, parece que os conflitos acabaram, que a própria história acabou. Mas ainda resta um desfecho extraordinário e irônico. Não contarei qual é para não diminuir a surpresa e a força das últimas imagens de "Nossa Música", que desfazem a ilusão no fim da história, questionam o futuro da União Européia e convidam novamente à ação política.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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