Pensata

Alcino Leite Neto

14/02/2005

A revolução da classe média

A notícia não interessa aos jornais brasileiros, mas ganhou destaque na imprensa britânica. "Loja da Ikea fecha depois que caçadores de ofertas provocam caos", dizia o título da vasta reportagem do "The Times".

Com efeito, 22 pessoas ficaram feridas quando cerca de 6 mil consumidores tentaram entrar numa loja da Ikea num subúrbio em Londres. Era meia-noite do 9 de fevereiro, e a loja planejara uma liquidação que duraria 24 horas. De madrugada, entre 0h e 3h, um sofá de couro seria vendido por apenas 45 libras (cerca de R$ 220). Entre 3h e 8h, uma cama de casal custaria 30 libras.

Os preços eram bons demais para serem desprezados. As pessoas acorreram de todo canto e, não encontrando mais lugar no estacionamento da loja, largaram seus carros na North Circular, uma espécie de Marginal que rodeia Londres. Congestionamentos tomaram conta do local.

Perto da loja, criou-se uma fila quilométrica, que começara às dez da manhã. Na hora da abertura das portas, porém, não havia apenas uma, mas várias filas. Houve correria para entrar, empurra-empurra, disputas, pisoteamentos. Não havia seguranças, não havia controle. Policiais e bombeiros tinham dificuldades para chegar ao local, devido ao engarrafamento. "Foi uma coisa extraordinária e de uma extensão imprevisível, eu nunca vi nada parecido", afirmou um dos bombeiros ao "Times". A loja teve que fechar 45 minutos depois que abriu. Vários consumidores foram parar em hospitais.

Não é a primeira vez que ocorre confusão nas lojas Ikea. Em setembro do ano passado, duas pessoas morreram pisoteadas e 16 ficaram feridas em Jeddah, na Arábia Saudita, depois que a empresa divulgou um dia de ofertas sensacionais.



A Ikea é uma rede de lojas muito famosa na Europa entre a classe média e estudantes sem dinheiro. Ela vende todo tipo de móveis e objetos para casa a preços bem acessíveis e com um design que não envergonha os usuários. A firma tem a seu serviço desenhistas que tratam de renovar constantemente os produtos, sempre de linhas simples, práticas e joviais, que absorveram as várias correntes do design moderno e pós-moderno.

Pessoas mais esnobes, na Europa, costumam se referir com desprezo aos móveis da Ikea, questionando a qualidade dos produtos e a vulgarização dos estilos. Outras pessoas, em viés político, lamentam a uniformização que a poderosa rede promoveria em várias partes do mundo. A Ikea estaria produzindo uma espécie de "fast home" com seus McMóveis.



Deixemos essa discussão de lado. O que interessa aqui é menos a loja do que essa fúria consumista que assaltou os britânicos na noite de 9 de fevereiro.

A sociologia e psicologia do consumo, bem como a antropologia dos shoppings e das megalojas ainda são disciplinas que engatinham. As universidades deveriam se empenhar em estudar estes fenômenos tão contemporâneos, que cativam tanta gente e vêm mudando as cidades, os homens e as relações.

O shopping, por exemplo, é hoje um modelo de organização urbana, e não exclusivamente para lojas. Museus, áreas de entretenimento (como cinemas multiplex), condomínios e outros setores se organizam à maneira de shoppings. A reforma do Louvre, em Paris, transformou uma parte da área do museu num grande shopping-center, em que consumo, cultura e arte se equivalem.

Há gente que vê nisso o desenrolar de um processo de democratização da cultura e dos bens de consumo. Outros, porém, enxergam a coisa como uma grande maquinação para transformar as cidades num shopping interminável, e a vida num cenário servil de trabalho, consumo e entretenimento.

Essa discussão está no centro de "Millenium People" (Flamingo), romance interessantíssimo do escritor britânico J. G. Ballard, o mesmo de "O Império do Sol" e "Crash".

No livro, que mereceria ser traduzido no Brasil, um grupo de profissionais liberais revoltados com a crescente alienação das classes médias na sociedade do entretenimento, decide promover uma revolução em Londres que transfigure o ambiente de passividade e conformismo.

Para tanto, eles contam com a inquietude que acomete a população de um condomínio em Londres, o Chelsea Marina, onde os moradores acumulam litígios com os administradores a respeito das hipotecas onerosas, dos preços exorbitantes dos serviços de luz e limpeza, dos locais de estacionamento etc.

Os moradores do condomínio são profissionais do conhecimento, como professores e cientistas, "vendedores de carros, assessores financeiros, produtores da indústria de discos e a lumpenintelectualidade dos articulistas de jornais e publicitários". Todos eles enfrentando o empobrecimento, a precariedade no trabalho, a demissão, a sua substituição por mão-de-obra mais barata.

"Espera-se que as classes médias sejam a grande âncora social, todo esse dever e essa responsabilidade. Mas as cadeias da âncora se afrouxaram. Os títulos profissionais não valem nada: ter uma licenciatura em letras é como ser diplomado em origami", diz um dos personagens do livro.

Novos pobres, ou novos proletários, como passam a ser chamados, os pequeno-burgueses de Chelsea Marina começam a roubar em supermercados e incrementar os seus protestos. É como se os habitantes de Alphaville, bairro de classe média em São Paulo, tivessem passado por um processo de empobrecimento e começassem a fazer protestos sociais, à maneira dos sem-teto.

Os habitantes de Chelsea Maritima são insuflados por um grupo radical que, ao mesmo tempo, parte para a ação violenta e começa a destruir agências de turismo, videoclubes, lojas e museus, porque tudo isso, na visão deles, serve à regulação e à servidão social.

Querem também destruir todos os laços do novo milênio com o século 20. "Ele modela tudo que fazemos, nossa maneira de pensar. Guerras genocidas, meio mundo na miséria e outra metade caminhando como um sonâmbulo para sua própria morte cerebral. Compramos os seus sonhos baratos e agora não podemos despertar", diz uma personagem a respeito do século passado.

Desta feita, o grupo promove um protesto contra a BBC, "que durante mais de 60 anos havia desempenhado um papel fundamental na lavagem cerebral das classes médias". E provoca um incêndio no National Film Theatre, de Londres, a fim de transformar em cinzas as fantasias de Hollywood lá arquivadas, buscando terminar com a exploração "da credulidade da classe média".

Montados em Land Rovers e Harley-Davidsons, os "revolucionários" de Ballard circulam por uma Londres ultracontemporânea, em torno das recentes construções do Domo do Milênio, do Globe Theatre e da Tate Modern, museu cuja arquitetura arrogante é, segundo o narrador, "um primeiro sinal de que a cultura das classes médias está se voltando para o fascismo".


Ballard narra com perspicácia e ironia esta ficção política ambientada num futuro bem próximo, mas que não saiu inteiramente de sua cabeça. Sabe-se da crise que acomete a classe média européia depois do desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Na França, fala-se hoje dos trabalhadores precários, que não têm emprego estável, e dos "cognitários", pesquisadores e acadêmicos que se proletarizaram por falta de recursos e trabalho.

Há exageros no livro de Ballard, claro, mas quem afinal irá reclamar de suas fantasias, depois de ouvir falar que, em Londres, milhares de pessoas se estapearam à meia-noite para aproveitar a liquidação de uma loja?
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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