Pensata

Alcino Leite Neto

27/02/2005

Os heróis tristes do Oscar

É evidente a superioridade de "Menina de Ouro", de Clint Eastwood, sobre os demais filmes concorrentes ao Oscar, inclusive "O Aviador", de Martin Scorsese.

O filme de Eastwood é um melodrama devastador, um conto impiedoso sobre a vacuidade e a tristeza deste mundo sem Deus, um filme que põe o espectador a nocaute no final. Entramos, como sempre, frívolos e carregados de pipoca no cinema --e saímos schopenhaureanos. Só os idiotas conseguem se recobrar em menos de uma semana do choque aplicado por Eastwood.

Vamos dizer que o filme tem duas partes, separadas por um terrível acidente. Na primeira parte, acompanhamos a jovem boxeadora, cheia de força de vontade e otimismo, que encarna o sonho de conquista pessoal num mundo adverso, à maneira clássica americana.

Acompanhamos a moça, sim, mas já percebemos as cores escuras, as sombras que se avolumam e o tom trágico que vai impregnando o filme.

Na segunda parte, chegamos ao inferno. Tudo se precipita: a vida é frágil, os homens são impotentes, o indivíduo está só, muito só, entre os outros reina a indiferença, toda alegria é pequena, toda conquista é vã, o resto é silêncio.

Filme enganosamente religioso e dolorosamente ateu, "Menina de Ouro" termina com uma das cenas mais arrasadoras do cinema americano: as luzes distantes de uma lanchonete, encravada numa estrada escura no fundo da América --o lugar dos sonhos do protagonista, sua imagem patética da felicidade.

Não é menos pessimista o filme de Martin Scorsese, embora "O Aviador" seja todo ele radiante de aventuras e luxos.

A história de Howard Hughes, este protótipo do indivíduo americano da ação e da conquista, tal como contada no filme está desde o início envenenada por um sentimento de falta, de derrota psíquica e de corrupção física que nos impede de ter do herói uma visão otimista.

No cinema clássico, freqüentemente o herói tinha que enfrentar a si mesmo (algum trauma, alguma resistência, algum erro) a fim de se auto-superar e continuar seu caminho rumo à vitória. Em "O Aviador", o personagem Hughes consegue vencer problemas gigantescos no plano material, mas não consegue enfrentar o seu próprio trauma, interior, que só vai se ampliando, na mesma proporção que aumentam seus sonhos de grandeza.

E, por fim, também não é de todo otimista o filme "Ray", outro concorrente ao Oscar. Inspirado na vida do músico Ray Charles, dirigido por Taylor Hackford, o filme é medíocre, mas nos interessa aqui, para efeito de comparação.

Decerto que o diretor trata a história como o trajeto edificante de um negro pobre e cego que se transforma em um celebrado músico. Mas o próprio filme não nos esconde que o personagem Ray só consegue enfrentar este mundo que o rejeita e o humilha, e só consegue criar seu estilo particular de música, porque conta com uma ajuda preciosa: a da heroína.

O compositor passa dois terços do filme, ou seja, os melhores anos de sua vida como galanteador e como músico, afundado até a alma na droga. Antes disso, é apenas a infância desgraçada numa favela no Sul racista dos EUA. Depois, é apenas a velhice insossa na mansão na Califórnia.

Certamente, o filme pragueja o tempo todo contra as drogas. Mas ele não consegue esconder que a vida dura de Ray --marcada pela morte do irmão, que ele não socorreu, pela cegueira desde a infância e pelo preconceito racial-- ficou bem mais palatável com a ajuda do diabólico pó branco.

Não deve ser apenas uma coincidência que os três principais filmes do Oscar exibam heróis tão opacos e tão infelizes.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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