Pensata

Alcino Leite Neto

28/03/2005

"Constantine", o inferno e a morte do papa

O inferno, tal como representado pelos cristãos, este local onde os malvados padecem no fogo eterno, embora muito popular na imaginação ocidental, não é tema freqüente nos filmes de Hollywood, nem na história do cinema em geral. Seus principais habitantes, os demônios, ao contrário, são figuras que sempre comparecem nas telas, e não apenas em filmes de terror.

Hollywood, que se esmerou em filmar desastres terrenos, verdadeiras visões da destruição no e do mundo, chegando a imaginar várias vezes, inclusive, o terrível apocalipse nuclear do planeta, foi muito parcimoniosa com visões das terras governadas por Lúcifer.

É até mesmo o caso de perguntar por que isso ocorreu. Especialistas saberão responder melhor do que este jornalista, mas certo é que no final do século 19, quando o cinema apareceu, a imaginação do inferno já não era tão importante nas religiões do Ocidente, e muito mais assustadores serão para os espectadores os desastres e as guerras sucessivas do século 20, um dos mais infernais de toda a história.

Há muito tempo (ou talvez desde a época do cinema mudo) não se via num filme "mainstream" americano uma representação tão direta e completa do inferno cristão como a que aparece em "Constantine", em cartaz em São Paulo. Só por isso vale a pena ver este filme claudicante do ponto de vista narrativo e um pouco exibicionista do ponto de vista cinematográfico, adaptado das histórias em quadrinhos.

O filme tem uma estranha fórmula que combina fantasias religiosas populares muito arcaicas com o imaginário do cinema clássico e as perspectivas visuais do videogame. Constantine é o nome do herói do filme, um sujeito torturado que fuma sem parar e por isso mesmo sofre de um câncer incurável nos pulmões. Ele circula num mundo impregnado de mitos e sinais religiosos, mas lembra menos um teólogo e mais um detetive existencialista dos anos 1940, à la Humphrey Bogart.

Por seus poderes extrasensoriais, Constantine tem a capacidade de ver os demônios e os anjos transitando na Terra e consegue falar com eles. Seu trabalho consiste em fazer exorcismos especiais, lá onde o poder dos padres fracassou, e mandar de volta ao inferno alguns diabos que vêm atormentar os pobres humanos.

Outro dos poderes de Constantine consiste em visitar o inferno e retornar ileso ao mundo terreno. É quando nós, espectadores, somos confrontados com a visão do inferno do filme.

Esta visão não difere em essência daquela que se veiculou ao longo de séculos na escultura ou na pintura. A terra infernal, como nos quadros de Bosch, é amarela e desértica, coberta de destruições, fogo, fumaça e poeira. Demônios saltitam para lá e para cá, como nas iluminuras medievais. De repente, num relance (infelizmente o diretor não se demorou na imagem), vemos as caldeiras ardentes superpovoadas de pecadores, com os demônios aplicando os suplícios infinitos, que o apócrifo "Apocalipse de Paulo" calculava em 144 mil tipos diferentes.

Nas mitologias celtas e escandinavas não eram incomuns histórias de heróis que viajavam até a terra dos mortos e de lá retornavam. Na mitologia grega, Orfeu vai até o Hades buscar Eurídice. Teseu faz o mesmo com Héracles. E houve, claro, na literatura clássica, a "Eneida", de Virgílio, cujas aventuras culminam com uma visita aos infernos.

No cristianismo, muita gente também foi capaz deste turismo abominável, como o santo irlandês Brandam (século 9), cujas lendas, incentivadas e difundidas sobretudo pelo meio monástico europeu, inflamaram a imaginação dos crentes por séculos. O maior passeio pelo inferno, porém, é o de Dante, na "Divina Comédia", guiado justamente por Virgílio.

É interessante o modo como Constantine acede ao inferno: mergulhando os pés ou o corpo inteiro na água, o condutor universal, como ele próprio diz. É muito mais prático do que procurar a entrada geográfica das terras de Lúcifer, como se cogitou desde os primeiros anos do cristianismo. Alguns julgavam que esta entrada poderia estar na Irlanda; outros, no sul da Itália, nos arredores do Vesúvio; outros ainda, na Sicília. A maioria dos cristãos, porém, concordava que o inferno se localizava nas profundezas da Terra.

Lá embaixo, os demônios faziam a farra, com a ajuda de fogo, vermes, ferros e serpentes. O fogo era o elemento central da punição, um fogo que não precisava de combustível e queimava eternamente o corpo e a alma sem destruí-los, como imaginava Santo Agostinho e os padres da Igreja, os primeiros a definir a teologia cristã.

O historiador Georges Minois (em "Histoire des Enfers") lembra que os judeus não tinham propriamente um inferno, e por isso não há tantos sinais dele no Velho Testamento. Neste predomina uma visão sobretudo materialista, de que tudo termina mesmo com a morte.

Também no Novo Testamento o inferno é um tema extremamente raro, embora o demônio seja personagem freqüente. "O inferno cristão se desenvolve primeiro no nível popular", diz Minois --muito mais do que nos livros sagrados e nas formulações teológicas.

No meio teológico, a questão é sobretudo polêmica. Para alguns padres da Igreja, a idéia de um lugar horrível de sofrimento eterno não combinava com a idéia de um Deus infinitamente bom. Tanto é assim que Clemente da Alexandria e depois seu discípulo Orígenes, no início do século 3, desenvolveram uma doutrina, chamada de apocatastase, em que vislumbravam o fim do inferno, no Juízo Final, com o perdão divino geral e irrestrito para todos, inclusive para o próprio Lúcifer.

A doutrina poderia ter vingado, se já no século 2 o inferno não estivesse sendo usado pela Igreja como instrumento pastoral. O medo que ele provocava nas pessoas se revelou um ótimo estímulo para que elas obedecessem às regras cristãs --é o que defendia São Jerônimo, por exemplo.

No Concílio de Constantinopla, em 543, a tese da apocatastase foi então considerada anátema, ou seja, contrária à doutrina da Igreja e cuja defesa poderia levar à excomunhão. A Igreja desistiu da hipótese de um perdão divino irrestrito no fim dos tempos e preferiu manter a idéia de um julgamento derradeiro, em que os bons iriam para o lado de Deus e os outros, para o fogo eterno do inferno.

Em "Constantine" há uma estranha concepção dos modos como se relacionam Deus e Lúcifer. O filme postula que, na origem dos tempos, os dois fizeram um pacto pelo qual não interferem diretamente no mundo, jamais tentam controlar a Terra pela força e deixam os homens livres para optar pelo bem ou pelo mal. Desta feita, apenas observam e vigiam: estão de olho na alma dos humanos, a qual eles receberão no pós-morte.

No clima "policial noir" do filme, Deus e Lúcifer são como chefes de duas gangues poderosas. Constantine está do lado de Deus, claro, mas ele lida com os diabos e com os anjos como se estivesse tratando com dois tipos diferentes de bandidos. Quando Lúcifer aparece no final, temos a impressão de estar vendo um mafioso de Tarantino. Cinematograficamente, "Constantine" leva pela primeira vez o gangsterismo ao plano da teologia --e vice-versa.

A morte do papa e o mundo desencantado

A teologia cristã, o Vaticano e os mistérios que cercam o catolicismo se tornaram nos últimos anos uma das principais fontes de inspiração da indústria do entretenimento, como no caso do best seller "O Código Da Vinci" e "Constantine".

Nosso mundo desencantado, sem mistérios, da super-racionalidade tecnológica, da informação total e em tempo real, da exposição contínua, em que tudo é contado e recontado, mostrado e remostrado infinitas vezes --este nosso mundo é fascinado pelas narrativas da Igreja Católica, uma instituição onde o segredo e o ritual permanecem no fundo intocados, mesmo com todas as mudanças e modernizações dos últimos anos.

O pontificado de João Paulo 2º foi um período em que a Igreja reviu várias de suas posições históricas, como a respeito da condenação de Galileu e da Inquisição, e abriu parte da documentação secreta do Vaticano. Foi também o período em que a Igreja se ajustou às demandas da sociedade da informação global, tanto do ponto de vista da imagem do papa (muito mais midiático), quando dos meios de comunicação (a TV e a internet foram incrementadas no Vaticano).

Veja, porém, o que ocorre agora com o estado de saúde do papa: tudo é tratado com alusões e segredos. Ninguém sabe ao certo o que está ocorrendo. Na última quinta-feira, o cardeal Giovanni Battista Re, o chefe da Congregação dos Bispos, se referiu ao estado do papa, falando do "testemunho que ele continua a nos dar com o seu exemplo de um sereno abandono a Deus, o que o relaciona com o mistério da cruz". Só os cardeais da igreja continuam a se expressar assim, por subentendidos.

Um belo dia, que não está longe, receberemos a notícia da morte de João Paulo 2º --e pronto: os funerais, a nova eleição, o próximo papa. Prepare-se. Será a maior e a mais exaustiva cobertura de mídia já realizada em todos os tempos. Será também a mais superficial, pois dificilmente a Igreja abrirá brechas para a mídia nas formalidades e nos rituais, nas restrições e nos segredos que sempre cercam a morte de um papa e a eleição de um novo.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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