Pensata

Alcino Leite Neto

10/04/2005

As religiões se unem em Jesusland

A morte de João Paulo 2º, como se imaginava, foi transformada em um estrondoso acontecimento midiático. Milhares de imagens do Vaticano chegaram aos jornais e às TVs. Há poucas, contudo, com significado histórico tão relevante quanto as que registraram o atual presidente dos EUA, George W. Bush, e dois ex-presidentes do país, George Bush e Bill Clinton, ajoelhados diante do cadáver do papa.

A foto que tenho em mãos, publicada na Folha de S.Paulo (7/4/2005, pág. Especial 7), traz ainda a secretária de Estado, Condoleeza Rice, e a mulher de Bush Jr., Laura, com um véu negro. Os três, além de Bush pai, olham, compenetrados, o corpo de João Paulo 2º, já vestido solenemente para o funeral. Clinton está de cabeça abaixada, como se rezasse. Ao fundo, cardeais e bispos, de pé.

Creio que é a primeira vez na história que três presidentes americanos, todos eles de credos não-católicos, se postam assim diante de um papa, no Vaticano. George Bush é da igreja episcopal. Clinton é batista. E George W. Bush, batizado na episcopal, é um "born again" (renascido) na igreja metodista, a mesma de sua mulher.

Por que os presidentes resolveram fazer tal reverência a João Paulo 2º e ao Vaticano, país com o qual os EUA só restabeleceram relações de fato em 1984 (era Reagan)? Por que George W. Bush foi o primeiro chefe de Estado a desembarcar no Vaticano para os funerais, ele que dirige um país onde os católicos não passam de 23% da população (no Brasil, eles chegam a ser cerca de 74%)?

Há pelo menos dois motivos. Primeiramente, pela repercussão internacional do evento. O que vemos nesta imagem é o principal império político e econômico compartilhando do luto do maior império religioso, o catolicismo, com cerca de 1 bilhão de fiéis. O que vemos é o império americano reverenciando um dos papas mais amados da história e o líder religioso que, embora se opondo à invasão do Iraque, foi o parceiro fundamental dos EUA na derrubada do comunismo. A visita é portanto extremamente importante do ponto de vista do simbolismo político.

No plano local, americano, a dimensão político-eleitoral da visita é o mais importante. O voto católico foi significativo para a reeleição de George W. Bush, em 2004. Quando concorreu pela primeira vez, em 2000, ele teve 47% do voto católico, contra 50% do democrata Al Gore.

No ano passado, Bush levou 52% do voto católico, contra 47% do democrata John Kerry. Detalhe: Kerry é católico e ele poderia ter sido a oportunidade de os católicos elegerem o seu segundo presidente em toda a história americana. Em mais de 200 anos de democracia, o único católico americano que chegou à Casa Branca foi John F. Kennedy (1961-1963).

O liberalismo de Kerry em causas como a do aborto e dos direitos dos homossexuais desagradou os católicos americanos, que antes votavam majoritariamente com os democratas. Desde o acontecimento trágico de 11 de Setembro, parte dos católicos americanos (dentre eles os numerosos latino-americanos), também entraram numa onda fundamentalista, como os seguidores de outras igrejas no país. Hoje, a pauta conservadora está fazendo convergir o catolicismo e as igrejas que outrora eram inimigas juradas do Vaticano.

"Caso Schiavo culmina aliança católicos-evangélicos" foi o título de uma reportagem do "New York Times", no último 24 de março. A reportagem ressaltava como católicos e evangélicos estão reunindo forças para defender a "cultura da vida", condenando a eutanásia, o aborto e a pesquisa com células-tronco.

"Agora, a aliança de evangélicos e católicos está entre as mais poderosas forças que moldam a política americana. No último ano, evangélicos conservadores comemoram quando uma penca de bispos católicos disseram que o senador John Kerry, o católico que era candidato presidencial democrata, não poderia receber a comunhão por sua posição a respeito do aborto. Bush cortejou votos evangélicos e católicos em 2004 e se beneficiou da mobilização", diz o "New York Times".

"Evangélicos e católicos juntos" é o nome de um documento de 1994, redigido pelas igrejas. O esforço de aceitação entre elas e de coligação em determinadas causas remonta, portanto, à época do governo Clinton (1993-2001). O documento, que pouca atenção mereceu à época, ganha importância histórica cada vez maior, pois ajudou a romper com séculos de animosidade entre católicos e evangélicos.

Desde o século 19, os Estados Unidos, não tinham embaixada no Vaticano, apenas representantes diplomáticos esporádicos. Quando o país estabeleceu uma embaixada no Vaticano, em 1984, várias religiões nos EUA protestaram, alegando que isto violava a Constituição americana, pois o Estado criava relação oficial com uma igreja, em detrimento de outras.

Conta-se que a decisão de Reagan de reatar as relações com o Vaticano foi acompanhada de várias trocas de favores. Uma delas teria sido o pedido do presidente para que o Santo Padre condenasse a teologia da libertação na América Latina, em troca do apoio americano ao sindicato polonês anti-soviético Solidariedade.

No século 17, o catolicismo se estabeleceu sobremaneira no Sul dos Estados Unidos. Com a onda de imigração do século 19, milhões de italianos e irlandeses engrossaram o número de católicos em toda parte no país. Foi este o período do pior e mais violento anticatolicismo nos EUA. Para os não-católicos, a hierarquia da Igreja e a relação dos fiéis com um Estado estrangeiro (Vaticano) era vista como um risco à democracia americana. Sem falar na animosidade histórica que havia por serem os americanos em sua maioria filhos da Reforma.

Ainda hoje há campanhas americanas na internet contra os católicos e o Vaticano, que ganham força quando ocorrem escândalos como o dos padres pedófilos. Há editoras anticatólicas nos EUA, como a Chick Publications, que publicam sistematicamente livros, panfletos e até mesmo quadrinhos raivosos contra a igreja, como "Alberto", a história de um ex-padre.

O anticatolicismo americano, porém, abrandou muito nas últimas décadas nos Estados Unidos. Em "Jesusland" (como chamaram a parte da nação americana que votou em Bush em 2004), igrejas cristãs estão muito mais preocupadas em superar divergências e se coligarem, mesmo com o judaísmo. Unidas, elas pensam ganhar força para enfrentar os novos anticristos, que são o fundamentalismo islâmico, inimigo nem sempre explicitado, e, sobretudo, o "individualismo hipermoderno" (na definição da revista "Christianity Today"), com seu desprezo pelos fundamentos religiosos.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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