Pensata

Alcino Leite Neto

20/06/2005

Os três tempos de Hou Hsiao-Hsien

Como voltei há poucas semanas do festival de cinema de Cannes, na França, sempre que encontro amigos cinéfilos, eles logo me perguntam: "Afinal, qual foi o melhor filme que você viu?".

A resposta é fácil: "Três Tempos", de Hou Hsiao-Hsien, diretor chinês de Taiwan, de 57 anos, um dos grandes mestres do cinema asiático.

O filme foi o último dos 21 concorrentes a ser exibido em Cannes --depois da apresentação de diretores muito mais afamados, como David Cronenberg, Gus Van Sant, Lars von Trier e os irmãos Dardenne (que levaram a Palma de Ouro por "A Criança").

As condições de apresentação de "Três Tempos", no último dia da mostra, quando toda a imprensa já estava bastante estafada, de certa forma prejudicaram a recepção do filme. Eu próprio escrevi apenas algumas poucas linhas a respeito dele para a "Folha", deixando mais espaço para as cogitações sobre a premiação do festival.

Trata-se, porém, de uma obra-prima --e espero saldar minha dívida com "Três Tempos" apresentando-o agora ao leitor da Pensata.

Hsiao-Hsien dividiu seu filme em três episódios autônomos, passados em três épocas diferentes. Todos contam histórias de amor vividas sempre pelos mesmos atores, a linda Shu Qi, que causou sensação em Cannes, e o talentoso Chang Chen. No conjunto, o filme é uma reflexão sobre o tempo, a história e a duração.

O primeiro episódio, "O Tempo dos Amores", se passa no início dos anos 60. A trama é de uma simplicidade emocionante, embalada por clássicos musicais como "Smoke Gets in Your Eyes". Shu Qi faz uma garota que trabalha num bilhar, frequentado pelo rapaz interpretado por Chang Chen. Jogo vai, jogo vem, eles se apaixonam, sem dizer um ao outro o que sentem. Um dia, o rapaz é convocado para o Exército. Ele parte. Ao retornar à cidade, não encontra mais a sua amada e sai à procura dela pelas províncias de Taiwan.

Toda a relação do casal de namorados é narrada com extrema delicadeza. As cenas são construídas com poucas palavras, os olhares não se fixam, o tempo passa muito devagar, espreitando a eternidade, enquanto os corpos movimentam-se com leveza, sem o peso da história. É como se Antonioni filmasse em parceria com Jacques Demy.

O segundo episódio, "O Tempo da Liberdade", acontece em 1911. É inteiramente mudo, com letreiros, mas colorido. Chang Chen encarna um jovem político que luta pelo fim da ocupação japonesa da China. Pouco tempo ele tem para sua mulher, envolvido que está na campanha de libertação. Ela, porém, vive pacientemente à espera do marido entre as quatro paredes da casa sofisticada onde moram, muito bem filmada por Hsiao-Hsien.

Se, no primeiro episódio, o tempo parecia um jogo inocente, como o bilhar, e o mundo se oferecia como aposta e expectativa, nesta segunda parte o tempo está todo ele comprometido com a história. A ambientação entre quatro paredes tem a ver não apenas com a idéia de enclausuramento num território ocupado, mas também com a teatralização do espaço-tempo, mais conforme à própria mise-en-scène da ação política.

Enquanto no primeiro conto, dominavam o silêncio e a música, no segundo predomina a palavra, apesar de o episódio ser, maliciosamente, silencioso e com letreiros, como se todo discurso devesse exibir sua imagem escrita, muito mais que sua forma acústica.

E chegamos à terceira parte, "O Tempo da Juventude", ambientada nos dias atuais. Agora, não há nem a expectativa, nem a história. Nem o jogo, nem a política. Nem a inocência, nem a libertação. Os personagens, urbanos, estão imersos num presente devorador, andam para lá e para cá, sem parar, aflitos e agoniados.

No primeiro episódio os protagonistas viviam à mercê do tempo. No segundo, eles pretendiam tomar o tempo nas próprias mãos, identificando liberdade e história. Neste terceiro, os personagens não conseguem se abrir à duração, de tal modo estão voltados para si mesmos. A história é sem significado, o futuro é sem valor, tudo se consome narcisicamente no aqui-agora.

O mais extraordinário no filme de Hou Hsiao-Hsien é o modo como ele transforma em matéria narrativa, em fábula cinematográfica muito sofisticada esta reflexão um tanto teórica sobre o tempo, sobre três modos de viver a duração e de viver o amor.

Não foi à toa que Jim Jarmush, ao receber o Grande Prêmio do Júri em Cannes por "Flores Partidas", assim se referiu ao diretor de Taiwan: "Senhor Hou Hsiao-Hsien, sou seu aluno".
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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