Pensata

Alcino Leite Neto

04/07/2005

Fashionistas, ainda há tempo de lembrar!

Vou continuar poupando o leitor de minhas impressões sobre os escândalos políticos e tratarei nesta Pensata de... Christian Dior.

Não a marca, nem a loja, mas o estilista, o homem que revolucionou a moda no pós-Segunda Guerra e cujo centenário de nascimento está sendo comemorado neste ano.

Alguém já viu de perto o famoso tailleur bar de Dior? Ou o mantô Arizona? Ou o conjunto Pisanelle? Ou o vestido Venus? Não sou especialista no assunto, nem tenho especial estima por coisas da moda, mas a cada vez que vejo, em filmes de época ou fotos antigas, uma mulher vestida com um Dior dos anos 40 ou 50, eu me pergunto se ela não é uma deusa moderna e se o Louvre não deveria ter uma ala apenas para abrigar as roupas feitas por este criador extraordinário.

Tenho a mesma sensação, claro, quando vejo uma criação de Courrèges, mas aí já estamos em outra época, os anos 60.

Volto ao pós-guerra. A França estava política e economicamente arrasada depois da ocupação nazista. Paris, que fora a capital da moda por mais de um século, havia mergulhado na pobreza e a vida precisava ser refeita em toda parte. O luxo, a exuberância e a sofisticação, que eram marcas da capital francesa, pareciam coisas do passado.

Foi então que, em 1947, Dior fez o seu primeiro e bombástico desfile, na casa de costura instalada no número 30 da avenida Montaigne, até hoje uma região requintada de Paris.

Quando todo mundo economizava no tecido, Dior mostrou roupas que gastavam metros e metros de fazenda. Quando todo mundo pregava a austeridade, Dior apresentou peças que eram puro encantamento, reafirmavam o luxo e reinventavam a feminilidade.

"It's quite a revelation dear Christian... Your dresses have such a new look", exclamou Carmel Snow, a então editora da poderosa revista feminina Harper's Bazaar. A expressão pegou. O "new look" espalhou-se pelo mundo e resgatou para a França a sua posição central na criação da moda.

Para as mulheres, foi o equivalente a uma revelação. O "new look" coincidia com os anseios de tirar o "uniforme" da Segunda Guerra, aquele que as cobrira por mais de cinco anos --período no qual elas tiveram que poupar no guarda-roupa e transformar a vestimenta em algo simples, prático e forte (conforme a ótima análise de Erika Palomino, em "A Moda", ed. Publifolha).

Decerto que as roupas de Dior não eram para todo mundo. Eram para as milionárias, sobretudo as norte-americanas, que se apaixonaram pelos vestidos, comprando-os às pencas. Eram também para as estrelas do cinema, como Rita Hayworth e Marlene Dietrich, clientes fiéis do costureiro.

Mas ninguém proibiu que as senhoras e senhoritas dos quatro cantos do Ocidente copiassem o estilo, que elas conferiam nas revistas femininas em forte ascensão no período. De repente, estavam todas vestidas com roupas à maneira de Dior.

Acompanhar, porém, as criações era um desafio. Dior foi pioneiro na troca sucessiva de estilos. Depois da linha Corolla (ou Figura 8, por causa da largura dos ombros e a cintura fina), com que ele revolucionou a silhueta feminina em 1947, vieram rapidamente a linha Sinuosa, a linha Oblíqua, a linha Tulipa, a linha H, a linha A e assim por diante...

A carreira de Dior demorou para alçar vôo, mas, quando o fez, cumpriu um trajeto fulgurante. Ele nasceu em 1905, em Granville, na região da Normandia, filho de industriais, que entrariam em falência durante a Segunda Guerra. Estudou ciência política por insistência do pai, que o imaginava embaixador. Não seguiu a carreira: empregou-se como desenhista de moda em revistas e ateliês de costura. Na Ocupação nazista da França, ajudou a vestir mulheres de nazistas.

No final da guerra, associou-se a um comerciante de algodão, Marcel Boussac, que se entusiasmou com a idéia de produzir roupas que gastavam muita quantidade de tecido. Ao fazer o seu primeiro desfile, Dior já estava com 42 anos.

Durante uma década, foi o imperador incontestável da moda no mundo, com pouquíssimos rivais (Balenciaga era um deles). Quando morreu, em 1957, na Itália, tinha construído um império, graças ao seu tino comercial e o de Boussac.

Foi o jovem Yves Saint-Laurent quem assumiu com 21 anos o lugar vago de estilista da maison Dior. Não durou muito tempo no emprego, apesar do sucesso tremendo de crítica que teve a sua primeira coleção. A investida de Saint-Laurent no estilo juvenil da época, meio "beatnik", meio existencialista, assustou o empresário Boussac.

Saint-Laurent foi substituído pelo conservador Marc Bohan, que ficou no posto até 1996. No seu lugar, assumiu o excêntrico John Galliano, que é até hoje o criador de alta costura da casa Dior, controlada pelo grupo LVMH, um dos mais poderosos da França.

Em 2002, ao se despedir do mundo da alta costura, pressionado pela idade e pelas exigências cada vez mais torturantes dos oligopólios que controlam a indústria do luxo no mundo, Saint-Laurent encontrou uma eficiente definição da sua própria atividade: "A moda não é de fato uma arte, mas precisa de um artista para existir", disse ele. Christian Dior foi um desses artistas essenciais da moda no século 20.

Agora, me diga: será que a Fashion Week, que está acontecendo em São Paulo, se lembrou de homenagear Dior no centenário de seu nascimento? Ou deixará passar a oportunidade de recordar este notável criador, que colocou a moda num patamar tão elevado?

Se os "fashionistas" não cuidaram disso, creio que ainda há tempo. O resultado será certamente muito útil para todos: servirá para introduzir um pouco de história e de memória numa atividade que dá tão pouca atenção ao seu próprio passado.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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