Pensata

Alcino Leite Neto

01/08/2005

Quando a Al Qaeda acabou com o IRA

O anúncio do IRA (Exército Republicano Irlandês), feito na última semana, de que resolveu abandonar a luta armada é um fato histórico muito importante, que foi colocado um pouco em segundo plano no Brasil, por motivos óbvios: nossa atenção está voltada inteiramente para os escândalos vertiginosos em Brasília e para a tragédia do brasileiro assassinado em Londres pela polícia secreta britânica.

Parte da imprensa do Reino Unido, sobretudo da Irlanda do Norte, recebeu a notícia com ceticismo. Mas fato é que esta foi a primeira vez em quase cem anos de história do IRA (fundado na década de 1910) que o grupo terrorista católico fez tal proclamação, marcando inclusive um horário para a deposição das armas. Vale a pena citar o início do comunicado histórico do IRA, divulgado em 28 de julho:

"A direção de Oglaigh nah Eireann (nome do IRA em gaélico, língua oficial da Irlanda) ordenou formalmente o fim da campanha armada. Esta decisão terá efeito a partir de 16h. Todas as unidades do IRA receberam ordem de depor as armas. Todos os voluntários foram incumbidos de sustentar o desenvolvimento de programas puramente políticos e democráticos exclusivamente pacíficos".

Vários motivos foram aventados para explicar a decisão inédita que encerraria a carreira sanguinária do grupo, responsável pela morte de mais de 3.600 pessoas desde o início da década de 70. Um deles é que a atual pujança econômica da Irlanda (país de maioria católica que ficou independente em 1921) teria tornado desinteressante à população a luta pela unificação com a Irlanda do Norte (país que faz parte do Reino Unido e tem maioria protestante). Outro é que esta mesma população católica, cujos avós e pais costumavam simpatizar com o IRA e proteger seus membros, não quer saber mais de violência política na bem-instalada democracia irlandesa.

Além disso, cresceu entre as pessoas a sensação de que o IRA estaria se dirigindo para o crime organizado (como, aliás, ocorreu com as Farc da Colômbia), depois que recaíram sobre ele, no final do ano passado, as suspeitas de ser o responsável por um roubo espetacular no Northern Bank, de 38 milhões de euros, o maior da Europa até hoje.

São razões certamente importantes, mas há outra ainda que explicaria a decisão do IRA neste exato momento: os atentados de muçulmanos radicais em Londres.

Com efeito, as ações terroristas da Al Qaeda e suas variantes colocam em xeque o modo de ação do IRA, que durante a sua história cometeu vários atentados em Londres. Elas levam as pessoas a confundir uma e outra organização e a aumentar assim a sua aversão pelas práticas do grupo irlandês.

No caso de um ataque terrorista a Londres, a confusão tenderia a ser inevitável, num primeiro momento. Como, aliás, ocorreu com o ETA nos atentados em Madri no ano passado, quando por algumas horas todos ficaram em dúvida se se tratara de um ato planejado por radicais muçulmanos ou pelos terroristas que lutam pela independência do País Basco. O ETA, que é responsável por mais de 800 mortes na Espanha em seus 40 anos de existência, se sentiu obrigado, na época, a emitir um comunicado se dissociando dos atentados na capital espanhola.

Muito embora, em décadas passadas, terroristas de diferentes grupos europeus tenham se associado a grupos de origem árabe e muçulmana --e uns e outros (em geral inspirados pelo marxismo) comungassem das mesmas causas, como a da libertação da Palestina--, nada mais inconveniente para o IRA, que se julga um protagonista da causa da independência política irlandesa, do que ser comparado a um movimento no estilo Al Qaeda.

O modelo Al Qaeda descende do terrorismo desenvolvido historicamente no Ocidente, inclusive pelo IRA, acrescido da tática dos homens-bomba, que teria florescido no Oriente Médio com o Hizbollah (grupo libanês). Mas é ao mesmo tempo a deriva da ação terrorista para um terreno suprapolítico, alimentada pelo fanatismo religioso. A intenção política existe e está evidente, como, por exemplo, a de expulsar os EUA e seus aliados do Iraque, mas ela vai associada ao propósito retrógrado da guerra santa contra o Ocidente e da instalação de um regime de tipo teocrático que unificasse todo o mundo árabe-muçulmano.

Os ataques muçulmanos a Londres "roubaram" do IRA o seu terreno de ação --e não é por acaso que muitos dos locais dos atentados coincidem com os antigos alvos do grupo irlandês. O IRA não está desistindo do terror por simples humanidade, mas por ter perdido o seu campo de batalha para uma força atualmente mais beligerante.

Os ataques muçulmanos também "roubaram" do IRA a sua eficiência, pois a questão irlandesa passa naturalmente ao segundo plano quando o Reino Unido entra em estado de guerra permanente contra um inimigo escondido em suas próprias entranhas. Para tornar visível e significativa a sua luta, os membros do IRA precisam agora recorrer às batalhas travadas dentro da democracia.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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