Pensata

Alcino Leite Neto

29/08/2005

A auto-ajuda política do camarada Mao

O porteiro me entrega um pequeno pacote. Dentro, encontro uma relíquia: uma primeira edição do livrinho vermelho de Mao Tsé-tung, de 1966, impressa em francês na República Popular da China. Quase caio para trás, de surpresa, de susto, de alegria. Nunca fui maoísta, não tenho entusiasmo por revoluções nem a paciência e a confiança necessárias à militância política. Sofro de um mal ainda pior: a cinefilia, doença já antiga da humanidade e cuja história, para quem se interessa, foi descrita com inteligência por Antoine de Baeque em "La Cinéphilie" (ed. Hachette).

Para mim, folhear o livrinho de Mao é o mesmo que tocar o soutien de Janet Leigh em "Psicose" (peça que, aliás, foi exibida em Paris em 2001, numa redoma de vidro). Ou experimentar o chapéu que James Dean usou em "Vidas Amargas". Ou manipular a navalha que Buñuel usou em "Um Cão Andaluz". O pequeno volume vermelho é um fetiche para cinéfilos: ele comparece obsessivamente --e às pencas, com vários exemplares empilhados nos cantos de um apartamento--, em um dos principais filmes de Jean-Luc Godard, "A Chinesa" (1967).

Não apenas aí: o maoísmo tem curiosas relações com o cinema. A difusão desta ideologia no final dos anos 60 na Europa coincide com a Revolução Cultural chinesa (a partir de 1965-1966) e também com o apogeu do modernismo cinematográfico. Grandes diretores irão refletir sobre a China e a política de Mao, como Marco Bellochio e Michelangelo Antonioni. Importantes críticos adotarão o maoísmo, como Serge Daney. Diretores também se converterão a ele, como Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, que juntos formarão o Grupo Dziga Vertov, coletivo para a realização de filmes militantes (que foram exibidos recentemente em São Paulo e no Rio).

Foi justamente por causa de um artigo que escrevi sobre a fase maoísta de Godard que um amigo resolveu me presentear com o exemplar do livrinho vermelho de Mao Tsé-tung, encontrado por ele no canto de um sebo paulista.

O raro exemplar cabe no bolso: tem 9 cm de largura por 13 cm de altura. Na capa firme feita de plástico vermelho, em baixo relevo também em vermelho, está o nome correto do livro: "Citations du President Mao Tse-Toung". Abaixo, a estrela vermelha da bandeira chinesa.

Na primeira página, antes do título, vem a seguinte frase do "Manifesto Comunista", de Marx e Engels, impressa em letras maiúsculas, em vermelho: "Proletários de todos os países, uni-vos!". Em outra página, há um retrato de Mao em sépia. Em seguida, um fac-símile de ideogramas com uma citação de Lin Piao: "Estudar as obras do Presidente Mao, seguir seus ensinamentos e agir segundo suas diretrizes".

Lin Piao (ou Biao, 1908-1971) foi um controverso chefe militar comunista que, em 1966, chegou a ser o segundo homem do PC chinês. Foi também um dos principais líderes do partido a incentivar o culto à personalidade de Mao Tsé-tung (1893-1976), sobretudo a partir da Revolução Cultural, movimento lançado a pretexto de combater o revisionismo (das idéias comunistas) e de reeducar o povo e os intelectuais para a luta de classes e a revolução.

O livrinho das citações de Mao foi difundido principalmente nesta época, quando todo chinês era obrigado a carregar um exemplar, na escola ou no trabalho --o que leva a crer que as edições chegassem a bilhões de exemplares. Nas fábricas e no campo, a atividade era interrompida para que se lesse e se discutisse as idéias contidas no volume, que os jovens empunhavam nas manifestações como se fosse uma arma ou um ícone sagrado. Tal idolatria pelo livrinho levou os inimigos de Mao a afirmar que o volume funcionava na China comunista como um novo Tao te-king, em referência à obra com os pensamentos de Lao Tsé, filósofo e guia espiritual chinês. Ou, para fazer uma comparação ocidental, como uma Bíblia para crentes.

A Revolução Cultural chamou a atenção do mundo e, na Europa do final dos anos 60, incentivou a conversão de numerosos estudantes ao maoísmo, que adotaram também o livrinho como manual político. Edições em várias línguas eram impressas na China, mas a fornada mais célebre veio a ser, justamente, a publicação em francês, de tal modo o maoísmo firmara-se no ambiente intelectual e universitário do país de De Gaulle.

Meu exemplar um tanto envelhecido traz marcas de um uso contínuo e possivelmente militante. Imagino se o volume não terá circulado nos bolsos de algum estudante brasileiro pelas ruas de Paris durante as revoltas de Maio de 68.

O livro é dividido em 33 capítulos, com centenas de citações. Abre com "Partido Comunista" e encerra com "O Estudo". Entre um e outro, há capítulos que tratam das "Classes e Lutas de Classes", da "Guerra Popular", do "Heroísmo Revolucionário", da "Disciplina", dos "Jovens" e da "Cultura e da Arte" etc. Em três folhas soltas, está impresso um prefácio de Lin Piao, datado de 16 de dezembro de 1966.

Encontro no livro de Mao uma de suas mais famosas metáforas: "O imperialismo e todos os reacionários são tigres de papel". É a mesma que ele usa para se referir à bomba atômica: "A bomba atômica é um tigre de papel que os reacionários americanos utilizam para assustar as pessoas".

Também encontro a origem do título de um dos filmes célebres de Godard, "Vento do Leste": "Estimo que a situação internacional chegou a um novo impasse. Há agora dois ventos no mundo: o vento do leste e o vento do oeste. Segundo um ditado chinês, 'ou bem o vento do leste ganha do vento do oeste, ou é o vento do oeste que ganhará do vento do leste'. Do meu ponto de vista, a característica da situação atual é que o vento do leste está ganhando do vento do oeste, o que significa que as forças socialistas adquiriram uma superioridade esmagadora sobre as forças do imperialismo".

Frases assim, cheias de confiança, mas que a história desmentiu, dão um ar deliciosamente "retrô" ao livrinho vermelho, que é sempre muito claro, objetivo e otimista. Por vezes, as citações de Mao são apenas uma exposição rápida do pensamento marxista-leninista: "Luta de classes --certas classes são vitoriosas, outras são eliminadas. Isto é a história, a história das civilizações depois de milênios. Interpretar a história deste ponto de vista é o que se chama materialismo histórico; colocar-se no plano oposto, é o idealismo histórico" (pág. 9).

Outras vezes, Mao dá conselhos de ação e comportamento, como se elaborasse um manual de auto-ajuda político e materialista: "Não seja orgulhoso. É uma questão de princípio para todos os dirigentes e é também uma condição importante para a manutenção da unidade. Mesmo aqueles que não cometeram faltas graves e que obtiveram grandes sucessos no seu trabalho não devem ser orgulhosos" (pág. 129).

Os conselhos se estendem a métodos de trabalho, que hoje poderiam constar de um manual para empresas: "Menos gente, mas os melhores, e simplificar a administração. Conversas, discursos, artigos e resoluções devem ser claros e concisos. Do mesmo modo, as reuniões não devem ser muito longas" (pág. 128).

Pergunto-me se, dispensada um pouco a ideologia, o velho camarada Mao não terá alguns conselhos a dar ao PT, ao governo e aos políticos neste momento crítico. E, folheando novamente o volume, antes de encerrar esta Pensata, deparo com ao menos três boas dicas, o que leva a crer que talvez fosse útil distribuir o livrinho vermelho em Brasília:

A corrupção é crime grave

"No que concerte às despesas orçamentárias, devemos ter por princípio a economia. É preciso que todo o pessoal dos organismos governamentais compreenda que a corrupção e o desperdício são crimes extremamente graves." (pág. 208)

Não calar nada do que você sabe

"Um traço marcante que nos distingue dos outros partidos é a prática conscienciosa da autocrítica. Como nós já dissemos, devemos constantemente varrer nosso quarto, senão a poeira se amontoará; devemos lavar regularmente o rosto, senão ele ficará todo sujo. O espírito de nossos camaradas e o trabalho de nosso Partido podem igualmente cobrir de poeira: eis por que nós devemos varrer e lavar. (.) Examinar sem cessar nosso trabalho, introduzir largamente neste exame o estilo democrático de trabalho, não temer nem a crítica nem a autocrítica, seguir as máximas tão instrutivas do povo chinês: 'Não calar nada do que você sabe, não guardar para si nada do que você tem a dizer', 'Ninguém é culpado por ter falado, compete àquele que escuta fazer seu proveito' (.) Eis o único meio eficaz para proteger o espírito de nossos camaradas e o organismo de nosso Partido de toda contaminação pelas poeiras e os micróbios políticos" (pág. 287).

Responsabilidade diante do povo

"Servir ao povo de todo coração, sem se desligar um só instante das massas; partir, em tudo, dos interesses do povo e não dos indivíduos ou de um pequeno grupo; identificar nossa responsabilidade diante do povo com nossa responsabilidade diante dos órgãos dirigentes do Partido --eis o que inspira os nossos atos" (pág. 188).

Especial
  • Erramos: "A auto-ajuda política do camarada Mao"
    Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

    E-mail: aleite@folhasp.com.br

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