Pensata

Alcino Leite Neto

26/09/2005

Da praça pública ao mundo televirtual

O jornal "The Guardian" anuncia que o Channel Four, canal britânico de TV, está preparando o que talvez seja o primeiro teledrama interativo do mundo. Vai se chamar "Dubplate Drama" e será dirigida por um rapaz de 25 anos, Luke Hyams.

A história terá como base o mundo do hip-hop, dos DJs e das rádios piratas em Londres. Por isso mesmo, entre os atores haverá algumas estrelas da música negra na Grã-Bretanha, como a eletrizante Ms. Dynamite. "Dubplate" é um disco de acetato ou vinil, feito em tiragem limitada e às vezes de vida curta, que as fábricas utilizam como prova e os DJs adotaram para o seu trabalho.

Cada episódio da minissérie, conta o jornal, terminará com um dilema para a personagem principal, encarnado pela MC Shystie. A maioria dos espectadores decidirá o rumo que a personagem tomará, influenciando assim no desenrolar da história como um todo.

Ficções interativas, sejam escritas, sejam dramatizadas, já existem na internet, inclusive no Brasil. A brasileira AllTV, que funciona na rede mundial de computadores, lançou recentemente uma novela deste tipo, "Umas e Outras", que é exibida às quartas-feiras. No final de cada capítulo, os espectadores podem participar de um programa online, com a presença do autor e do diretor, apresentando sugestões para a trama.

A interatividade parece ter um futuro radioso na televisão. Dentro de alguns anos, programas como "Você Decide" e "Big Brother", que convocam a participação do espectador pelo telefone, bem como os índices de ibope, que influenciam no desenvolvimento das tramas, serão considerados como as manifestações primitivas de uma nova cultura televisiva que emergia no início do século 21.

Em breve, entraremos na era da TV digital, que provocará verdadeira revolução no modo de transmissão dos conteúdos televisivos, facilitando e aprimorando a interatividade dos espectadores com as centrais de produção e dos espectadores uns com os outros. Não é absurdo pensar que, um dia, as ações dos personagens (encarnados por atores ou seres virtuais) nas telenovelas poderão ser modificadas online pelo público interligado.

De um certo ponto de vista, é um futuro assustador, mas já abrimos a sua porta. A televisão, de simples meio de entretenimento e de difusão de informações, foi-se transformando nas últimas décadas num mundo paralelo que acabou por tornar a própria realidade uma peça adjacente de seu sistema.

Tal condição é tanto mais visível em países de história jovem e população pouco letrada, como o Brasil, onde a TV se tornou o meio hegemônico de produção e transmissão da cultura e da informação, assim como o lazer primordial. Valeria dizer que ela também se tornou um meio sofisticado de controle social --e aqui é preciso pensar em termos "sistêmicos", sem diabolizar uma ou outra emissora, pois estão todas comprometidas num processo maior e impessoal, em que também nós, os espectadores, temos papel preponderante, como tele-servos voluntários.

A crise do tradicional espaço público e a ascensão do ambiente televisivo como lugar determinante da interlocução, ou melhor, da exibição das forças sociais questiona a forma antepassada da democracia, sem no entanto destruir o seu conceito e a sua prática formal.

É certo que, à primeira vista, nossa preocupação em acompanhar o andamento das CPIs pela TV e o gosto das emissoras pela difusão dos depoimentos na Câmara parecem uma bela demonstração de serviço público, de transparência política e de interesse pelos destinos da pátria.

Sim, à primeira vista. Pois, no fundo, sem que ninguém esteja obrando maquiavelicamente para isso, o que está ocorrendo é um processo de adaptação coletiva à gestão midiática da política _introduzindo assim, cada vez mais, nas instituições os paradigmas de linguagem e de marketing televisivos.

Isso não diz respeito apenas às campanhas eleitorais na televisão, tão questionadas nesta crise, por obrigarem os partidos a despenderem fortunas. Nem diz respeito apenas ao pendor exibicionista de alguns parlamentares, que adoram se posicionar em frente às câmeras da TV Globo para tentarem estrelar o "Jornal Nacional".

O processo, no seu conjunto, tem a ver, de fato, com o modo como enxergamos a realidade e a produção da realidade. É esta mesma realidade que nos parece cada vez mais difusa, ou talvez insuficientemente real, se ela não se apresenta a nós traduzida no idioma da televisão.

É a história que estamos vivendo, alguns povos mais à frente, outros a passos lentos. E não será fácil e será talvez traumática a experiência de passar da praça pública ao ambiente "público" televirtual, quando as aspirações da democracia clássica e do sistema representativo darão lugar à tirania auto-consentida das multidões espectadoras, quando toda ação política será mediada pelo espetáculo e quando todos os indivíduos serão soberanamente inúteis e interativos.

NOTA DE DESPEDIDA

Devido a mudanças na minha vida profissional, deixarei de escrever a partir de hoje na seção "Pensata", da Folha Online. Espero retornar um dia para este bom lugar do jornalismo e da crônica, que me deu tanta satisfação. Quero agradecer aos leitores que me aturaram durante quatro anos, suportando todas as minhas divagações, todas as dúvidas que eu jogava sobre seus ombros, todos os meus entusiasmos e as minhas indignações de ocasião e também todos os meus erros. Muito obrigado. Até logo.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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