Pensata

Alcino Leite Neto

22/02/2002

A nova política argentina e o catecismo de Strindberg

O "Le Monde" conta que os argentinos andam se reunindo em assembléias nos bairros de Buenos Aires para discutir a situação do país e decidir sobre ações e manifestações públicas. Os encontros acontecem diariamente, à noite, nas praças, em clima de "quermesse". Nos domingos, delegações dos bairros se encontram no parque Centenario para informar como anda o trabalho de mobilização de cada local e discutir os próximos passos dos protestos que tomaram conta do país.

Nestes encontros, os políticos não podem comparecer. São eles o principal objeto de ódio dos argentinos, junto com os bancos, o FMI, os juízes, as empresas estrangeiras e os sindicatos (que têm no país uma história toda particular, relacionada ao peronismo). Partidos de esquerda ficam à distância, observando a movimentação nas praças.

O "Le Monde" escreve: "Banidos dessas assembléias e não podendo mais sair nas ruas sem correr o risco de serem injuriados ou agredidos, os homens políticos argentinos olham no jornal televisivo esses cidadãos, mulheres respeitáveis e quinquagenárias encolerizadas, que, havia alguns meses, saboreavam calmamente os 'reality shows' na telinha de suas salas. Todas as decisões são tomadas por votos com a mão levantada; nenhum orador pode falar em nome de um partido político; os postos de delegados são rotativos e a informação circula por internet".

Várias vezes se falou que a Argentina esteve à beira de uma "guerra civil" -o que é um pleonasmo eficiente para evitar a forma mais ideológica da palavra "revolução".

Sim, poderia ter chegado perto de viver uma guerra civil ou uma revolução, mas se existissem por lá forças políticas organizadas que agremiassem a revolta dos cidadãos. Para tanto, não basta haver a ferocidade humana, é preciso estrategistas e lideranças, alguma organização de forças. O estado de deterioração do país, porém, é tamanho, que nem isso existia mais na Argentina.

Não havia nenhum grupo político capaz de encabeçar a revolta da população, quando a crise explodiu. O peronismo até então dominante está putrefato. A oposição se perdeu dentro do sistema institucional da política, sem verdadeira comunicação com o povo. Os argentinos, por sua vez, durante os últimos 10 anos viveram a fantasia de um país pujante, dolarizado, estimado pelos mercados e órgãos internacionais, e praticamente aposentaram a sua prática política, julgando que estavam no melhor dos mundos.

Por causa disso tudo, a "guerra civil" não aconteceu. Analistas profissionais e sistêmicos respiraram aliviados e saudaram a preservação das instituições durante a crise do Natal negro, enquanto eram substituídos os presidentes um a um. O povo até hoje grita nas ruas, enquanto as negociações com o mercado internacional prosseguem, aos trancos e barrancos.

De fato, naqueles dias sombrios, a Argentina foi submetida a um golpe de Estado comum, bem dentro da linhagem histórica latino-americana, mas adaptado às exigências psicológicas da época. Quando esgotaram as chances administrativas de um presidente, outro foi posto no lugar, para imediatamente se verificar que ele não funcionaria e deveria ser substituído por um novo. As instituições foram preservadas porque elas já não tinham importância nenhuma.

Só mesmo os latino-americanos para considerarem normal e "democrático" que, no espaço de uma semana, três presidentes tenham assumido seguidamente o país e até hoje nenhum plebiscito ou nenhuma eleição tenha sido realizada. Uma amiga francesa não embarcou nessa, e veio dela o seguinte comentário: "A Argentina inaugurou o golpismo neoliberal".

Os argentinos, parece, entenderam imediatamente que não poderiam esperar muito desse troca-troca de poderes, que o país já não estava em suas mãos, nem sequer na de seus políticos, que as organizações na verdade só serviam à reprodução do mesmo estado de coisas e as instituições haviam se tornado um mecanismo para a dominação da Argentina por forças que lhe são superiores e ainda não tinham terminado a cobrança da conta, mesmo se o país já fôra para o beleléu.

Parece que ficou também patente que a euforia econômica das últimas décadas servira à desmontagem de todo o sistema produtivo da Argentina, num ritmo predatório alucinante, favorecida pela aparição de uma nova elite local não-nacionalista e corruptiva, associada ao capital especulativo internacional e obediente às regras niilistas dos organismos financeiros mundiais. Essa elite e seus representantes ficaram no poder até que cumprissem o seu papel. A Argentina foi sugada junto com suas veias, e os argentinos foram finalmente largados a esmo, feito bagaços.

Faz sentido, assim, que os argentinos tenham agora resolvido manifestar o seu desprezo pelos políticos e se mobilizar fora da órbita institucional, praticando uma espécie de militância comunitária. Essa atitude expõe ainda mais agudamente a distância entre o governo da Argentina e o povo do país, como se um e outro já não pertencessem ao mesmo mundo.

Dessas aglomerações públicas, feitas de espontaneísmo político, desespero e incerteza, sem base ideológica nem respeito pela ordem existente, pode sair de tudo, se um dia elas vierem a produzir incrustrações organizadas de poder. Esperemos que não redundem em nenhuma forma de fascismo, insuflado pelo ressentimento da classe média e por sua histeria com as poupanças bancárias. Longe disso, que os argentinos revoltosos aproveitem as suas "quermesses políticas" para indicar à América Latina uma forma mais justa, igualitária, participativa e soberana de exercer a democracia no continente.

O CATECISMO RADICAL DE STRINDBERG

O sueco August Strindberg (1849-1912) é um dos grandes dramaturgos de todos os tempos, autor de obras-primas como "A Dança da Morte" e "Senhorita Júlia". Na França, praticamente toda a sua obra está disponível nas livrarias, inclusive um livreto curiosíssimo, chamado "Pequeno Catecismo para Uso da Classe Inferior" (Petit Catéchisme a l'Usage de la Classe Inférieure", ed. Babel, 5 euros).

É um libelo anarquista, escrito entre 1884 e 1886, em que Strindberg opera didaticamente toda uma desmontagem da organização social do Ocidente, à luz da luta de classes.

Ele certamente teve noções do pensamento marxista para elaborar sua pequena teoria, que opõe as "classes superiores" às "inferiores". O "catecismo" é para o uso destas, a fim de fazê-las reagir às ilusões propagadas pelas "classes superiores" e que servem como mecanismo de dominação.

A seguir, alguns trechos formidáveis do "Catecismo" de Strindberg, feito de perguntas e respostas:

"O que é a classe superior? Os parasitas, os exploradores.

O que é a classe inferior? Os produtivos, os explorados.

Quais são os meios empregados pela classe superior para dominar a classe inferior? A religião, a política, as leis, as ciências, as artes e a moral.

O ser humano pode viver sem religião? Sim, é fácil para a classe superior que tem os meios de subsistência. Para a classe inferior que luta por sua existência, numa angústia contínua, é mais difícil.

O que é a política? É a arte de governar, ou a arte por meio da qual a classe superior mantém a classe inferior sob sua dominação. Por político, entenda-se igualmente um comportamento pérfido.

O que é a política exterior? A cooperação entre as classes superiores de diferentes nações.

Quais os meios que a classe inferior possui para defender seus interesses contra a classe superior? O direito de voto, lá onde ele existe.

Não há outro meio? A revolução.

A partir de qual momento a revolução é legal? Quando ela é bem sucedida.

O que são as leis? Uma invenção da classe superior para manter a classe inferior sob sua dominação de uma maneira dita legal.

O que é a economia? Uma ciência inventada pela classe superior para se apropriar do fruto de trabalho da classe inferior.

Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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