Pensata

Alcino Leite Neto

01/03/2002

A beleza que existia na MPB

A Colette é uma das lojas chiques de Paris. Fica numa esquina da rue Saint Honoré, a poucas quadras do Louvre e está cercada de outros estabelecimentos sofisticados. A sua entrada é mais democrática que os demais, o ambiente é descontraído, a decoração é minimalista, os produtos são fascinantes, mas os preços levam os bolsos à histeria.

Há sempre muitos japoneses e jovens elegantes circulando no local, curiosos e concentrados, como numa galeria de arte, e remexendo nos produtos que levam assinaturas poderosas da moda: Prada, Gucci, Helmut Lang ou Paul Smith. No subsolo, fica um gostoso café, frequentado por modelos e dândis, onde o som ambiente será com certeza algo do gênero eletrônico ou alguma canção da música popular brasileira.

A Colette não é o único lugar em Paris onde a MPB é tocada como música de fundo. Nos cafés "branchés" ("ligados", da moda), ela é uma presença constante, em versões originais (um Jorge Benjor da década de 70, por exemplo) ou remixadas por DJs. Até nas Galleries Lafayettes, o famoso ponto comercial, é comum soar de tempos em tempos, na confusão dos frequeses e das compras, uma canção dos anos 60 na voz de Gilberto Gil ou Chico Buarque.

A assimilação da MPB, em Paris, já ultrapassou bastante a fase do exotismo e entrou numa esfera de gosto complexo, que atingiu até mesmo as seleções de músicas ambientes, que são para serem ouvidas sem compromisso. É muito improvável que nesses lugares ressoe uma Daniela Mercury. As chances de Elis Regina são bem maiores hoje em dia. Como são as de Ella Fitzgerald sobre Britney Spears, nestes mesmos locais.

Impressiona também que, aqui, esse gosto pela música brasileira não seja associado a passadismo e paralisia criativa. Canções famosas da bossa nova ou de outros gêneros brasileiros são tidas como clássicos, tal como as grandes composições do jazz americano. Ao serem tocadas em Paris (em Londres, em Barcelona...), fora do contexto que as forjou, elas imediatamente se impregnam de um estranho frescor, como se soassem da eternidade.

Um brasileiro chega a se surpreender que, num bar jovem e lotado do Marais, bairro da moda, seja reproduzida uma seleção completa de orquestras da época da bossa nova, cujos nomes ele praticamente desconhece: Tamba Trio, sim. Mas e esta agora? E esta outra? Mais estranho ainda é quando uma francesa manifesta para você que tem um grande interesse por... Luís Bonfá.

Para eles, tudo é novidade. As recriações dos DJs a partir do repertório da MPB se mistura aos sucessos históricos, revitalizando os ritmos. O símbolo máximo desse gosto atemporal é a filha de João Gilberto, Bebel Gilberto, que virou mania entre os franceses em 2000 com um disco em que a bossa nova e o samba receberam decisivo toque contemporâneo dado pelo produtor e DJ Suba, morto tragicamente.

Ouvir uma canção brasileira remota ou atual, no meio de gente estrangeira e estranha, é uma experiência que ao mesmo tempo nos singulariza e nos lança, numa atitude meditativa, de volta ao inconsciente Brasil. Que país se manifesta nessas músicas antepassadas e recicladas?

A MPB foi uma utopia de Brasil, uma promessa de país erguida em clave modernista pela classe média artística internacionalizada em confronto e associação com a cultura das classes baixas, fortemente musical. Essa "música popular brasileira" durou o mesmo tempo dessas trocas interclassistas, que tiveram ênfases variadas, segundo as épocas _mais nacionalista nos anos 40, mais intimista nos anos 50, mais política e com disrupções nos anos 60.

Por meio da música, todos se redimiam das fundas cisões sociais, raciais e regionais, bem como da tristeza geral de viver num país miserável e inferior. Os sentimentos, as situações, os ritmos, as satisfações e os dramas cotidianos se generalizavam nas canções, expressando ao mesmo tempo estados concretos e situações almejadas.

Daí o fundo de melancolia vivendo sob a superfície alegre, o fatalismo flertando com a esperança, o narcisismo auto-consagratório da beleza natural do país e de sua gente despistando ou enfrentando a tragédia coletiva: "Ah, por que estou tão sozinho? Ah, por que tudo é tão triste? Ah, a beleza que existe... A beleza que não é só minha, que também passa sozinha", dizem os versos extraordinários de uma das mais famosas canções da bossa nova.

De um modo ou de outro, com seu lirismo intersubjetivo, a música espalhava confiança no Brasil e nos brasileiros comuns, no seu modo de existência e em seu país, tido por condição como excepcional e maravilhoso. A música saía do fundo do tempo e, simultaneamente, erguia um tempo novo, com sua vertiginosa fertilidade e sua expectativa.

O vigor e a beleza da MPB vieram dessa construção coletiva, cheia de conflitos, é claro, mas movida por um esforço compartilhado de expressão quintessencial do país e de uma idealização projetiva do "ser brasileiro", às vezes, ou de transformação da nossa realidade, em outras.

Vieram também da riqueza musical, aberta à multidão de influências e confluências regionais e estrangeiras, e da enorme força poética, que conseguiu juntar o fraseado popular das ruas à dicção modernista dos livros _ela é o desfecho do modernismo como projeto cultural.

A bossa nova foi o momento culminante dessa manifestação cultural. Com ela, o Brasil universalizou as suas tradições sonoras, os seus sentimentos e tonalidades emocionais. O mundo se abrasileirou um pouco com a difusão internacional da bossa nova, que é o maior testemunho de nossa experiência lançado ao planeta e por ele compreendido.

A MPB acabou no Brasil, ou perdeu o seu sentido, ou virou cacofonia, no momento em que as classes se encaminharam definitivamente para um conflito aberto, desde o fim dos anos 60, e no qual imergem cada vez mais fundo, hoje em dia. É um caminho sem volta.

As classes médias artísticas perderam muito do vigor criativo de renovação com o seu isolamento, debatendo-se em fórmulas nostálgicas, artificiais ou histéricas. As classes baixas permanecem em fervilhamento criativo, mas só a indústria do disco ainda comunica com elas, por razões evidentemente comerciais, difundindo a sua música pelo país e projetando os seus mitos, com a ajuda da TV populista e frequentemente contra os olhares preconceituosos da classe média crítica. É também essa indústria que seleciona o que deve ser reproduzido e consagrado, deixando à margem e no silêncio a criação que julga sem futuro contábil.

Extinta no Brasil como expressão cultural ativa, a MPB sobrevive na França e no resto do mundo como repertório concreto, atemporal, desterritorializado, universalizado. Quando ela é ouvida, o consciente capta de imediato a sua excelente qualidade artística. O inconsciente, porém, deve perceber o quanto ela deixou guardado de promessas de uma outra vida no fundo de sua criação.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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