Pensata

Alcino Leite Neto

08/03/2002

Partido dos Trabalhadores do Reino de Deus

O Pantheon, em Paris, guarda no subsolo os restos mortais de grandes nomes da história da França. O turista pode visitar os mausoléus. O primeiro que ele encontra é o de Voltaire. Olhando para trás, ele avista o de Rousseau. Um está de frente para o outro na arquitetura da imortalidade do Pantheon. É uma confrontação e tanto.

O suíço Rousseau é um dos grandes escritores em língua francesa. Voltaire é outro. Mas eles não estão lá, tão homenageados na morte, apenas porque escreveram bem. Suas obras são a chave do Iluminismo e, portanto, a base dos princípios republicanos franceses, o núcleo da fundação moderna do país, em suma.

O magnífico prédio do Pantheon foi construído para ser uma igreja, a de Santa Geneviève, por ordem do rei Luís 15. Depois que estourou a Revolução Francesa (1789), foi transformado em panteão para os notáveis da França. As imagens sacras foram retiradas, o lugar ficou entregue ao silêncio dos mármores.

Mais tarde, o Estado devolveu o local aos católicos. Tomou novamente, devolveu mais uma vez e finalmente o recuperou para si. Fosse hoje uma igreja, talvez não coubessem lá os restos de Voltaire, nem os de Rousseau. Um e outro eram severamente anticatólicos e anticlericais. O segundo chegou a defender a idéia de uma "religião natural", em que Deus seria acessível a cada um, sem que precisássemos passar antes por padres, pastores e livros sagrados.

A Revolução também aprontou muitas ruindades com a Igreja Católica, que tinha na França uma de suas bases históricas mais sólidas. Tomou todos os seus bens. Mudou o calendário, abolindo os feriados religiosos. Criou o culto à deusa Razão, em substituição ao de Cristo. Trocou o título das ruas com nomes de santos. Obrigou os padres a se casarem e executou os que se recusavam.

Mais tarde, as coisas se acalmaram, mas não para sempre. Em 1904, o governo resolveu fechar as escolas católicas, alegando que elas professavam o atraso da civilização ao disseminar ilusões coletivas e restringir a liberdade humana. Em 1905, firmou constitucionalmente o princípio de laicidade, que separou o Estado da Igreja e submeteu os cultos religiosos à lei das associações.

Há muitas e muitas igrejas em Paris. O Panthéon não faz falta aos católicos, de fato. Em algumas delas, ainda há missas em latim, com canto gregoriano. A França é profundamente marcada por essas duas tradições: a fé católica antiquíssima e o desprezo pelas religiões _este frutificado ao longo de três séculos de doutrina racionalista, de projeto iluminista e de sucesso econômico e civilizatório da sociedade burguesa.

A laicização da França promovida pela burguesia esclarecida chegou mais longe do que conseguiram os comunistas na ex-União Soviética, onde, tão logo caiu o sistema, o povo correu para as igrejas. E é bastante oposta à situação dos Estados Unidos, sociedade profundamente religiosa sob a superfície laica.

Se na França acalmaram-se os atritos com os católicos e outras igrejas tradicionais, ainda causa problemas no país a manifestação de cultos que tenham sido criados recentemente e os que defendam atitudes anticientíficas e arcaicas, como proibir a transfusão de sangue ou realizar exorcismos. Os franceses têm uma grande curiosidade pelos mundos etnologicamente distantes, mas detestam que suas práticas culturais venham se instalar em solo pátrio. Quando se instalam, não hesitam em taxar estes cultos de seitas, com toda a carga negativa que a palavra carrega, e em persegui-las juridicamente.

Tem sido assim com a cientologia, credo que prolifera nos EUA e em outras partes, mas aqui está sob ameaça de dissolução, acusada de "publicidade mentirosa", "manobras fraudulentas" e "entrave à ação da Comissão Nacional de Informática e Liberdades". Também na França, a brasileira Igreja Universal do Reino de Deus é considerada uma seita e foi violentamente combatida quando quis adquirir cinemas para construir seus lugares de culto. Em certo sentido, o cinema é um culto que entusiasma mais os franceses do que o das divindades.

No Brasil, as coisas são muito diferentes, apesar das inflexões francesas de nossa história. A religiosidade nunca foi posta em xeque no plano coletivo e dificilmente será. A Igreja Católica viveu seu poder monopolizador da fé durante os nossos cinco séculos de existência e só nos últimos anos ela viu os fiéis debandarem para uma multidão de novos credos cristãos populares.

A crise atual da hegemonia católica na cultura brasileira não é resultado do programa anti-religioso de uma classe social que se opõe aos seus princípios. Em termos gerais, nós não chegamos a colocar em prática de fato o modelo do individualismo burguês, que imprimiu a regra abstrata da liberdade e da igualdade naturais no fundo cerebral do sujeito, rejeitando o fundamento transcendental da vida.

Por razões materiais muito definidas, no Brasil saltamos essa etapa, entrando num processo de individuação pós-moderno, em que a autonomia do sujeito é formulada por sua capacidade de consumo. Em vez de cidadãos, consumidores, sem acumular um fator sobre o outro. Por isso, os brasileiros adoram consumir: às vezes é a sua única prova de liberdade. Pesquisa divulgada pelo jornal "The Guardian" no ano passado mostra que estamos entre os povos mais consumistas do planeta e entre os que mais se valorizam pela quantidade de bens que possuem.

A religião, hoje, no Brasil, é uma espécie de bem de consumo. Sair de uma igreja e entrar em outra, ter a chance de escolher qual delas é a melhor, recusar os preceitos da antiga e poder adotar novos _eis um exercício de autonomia ao alcance das classes baixas, privadas em geral dos fundamentos da cidadania. Situação que é facilitada pelo modo de constituição das novas igrejas, como pequenas, médias ou grandes empresas em disputa no mercado da fé.

A religião é também uma forma de associação, como sempre foi, mas agora, no Brasil, definida não pela tradição e pelo constrangimento, mas por afinidades de grupo. A pessoa elege o núcleo religioso ao qual vai pertencer e a ele se associa como se escolhesse um clube de lazer, criando ali uma rede de solidariedade que enfrenta o mundo cada vez mais nuclearizado e socialmente violento.

A religião é, ainda, o que sempre foi: um modo de impregnar a realidade de sentido. Só que o sentido, quando se muda de uma igreja cristã para outra igreja cristã, é alcançado menos através da substância dogmática ou da verdade revelada do que pela dinâmica de atuação coletiva. O sentido é a interação, a irradiação emocional e física, ou seja, o divertimento espiritual compartilhado que assegura recompensas psíquicas imediatas numa realidade de expoliação infinita.

Assim, é uma tremenda bobagem falar em religiosidade intrínseca ao caráter brasileiro a esta altura. A religião no Brasil se tornou uma espécie de agremiação das classes baixas e das classes médias baixas, um modo de produção de identidades sociais. Considerar estas religiões, velhas e novas, como incondicionalmente obscurantistas, reacionárias e alienantes é deixar de ver a potência política que elas estão armazenando.

Quando se discute a coligação do Partido dos Trabalhadores com a Igreja Universal do Reino de Deus, muitas vezes se raciocina em termos estritamente eleitorais. Este processo, porém, se levado a cabo, pode gerar uma das principais e mais originais associações entre diferentes camadas das classes baixas que já foram produzidas na história brasileira.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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