Pensata

Alcino Leite Neto

15/03/2002

Americanos no Vaticano

A audiência do papa, feita usualmente nas quartas-feiras para mais de 3.000 pessoas, num anfiteatro da cidade do Vaticano, tem tanto de espetáculo aristocrático quanto da vulgaridade dos programas de auditório.

Para ter acesso ao local, o visitante precisa estar munido de convite. Há três tipos: um para a área "nobre" (gente que terá direito de se aproximar do papa depois da cerimônia), outro para os que ficarão na frente do auditório, e enfim o convite azul, para o restante da audiência. Este pode ser apanhado no mesmo dia, algumas horas antes do início da cerimônia.

O evento começa às 10h30, mas uma hora antes o anfiteatro já está lotado. É um local de arquitetura moderna, numa das entradas laterais à Basílica de São Pedro. Tem a forma de um grande barco, com vitrais ovalados e um palco de bom porte, onde ficam também os padres que vão ler nas várias línguas as instruções do dia.

Há gente de todo o mundo e de todo o tipo. Chegam crianças e jovens de toda a Europa, em excursões escolares, grupos de militares, freiras e padres, noivos em roupas matrimoniais e turistas comuns.

Depois das apresentações em seis línguas (italiano, inglês, francês, alemão, polonês e espanhol), um trio de vozes prepara a entrada do papa, que chega num púlpito móvel. O púlpito é levado até bem próximo de uma poltrona requintada, instalada à maneira de um trono no meio do palco. O papa desce do púlpito com a ajuda de dois auxiliares e se instala na cadeira principal.

O espetáculo prossegue. O papa lê o sermão em italiano por mais de 15 minutos. A seguir, os apresentadores se aproximam do microfone, fazem sua reverência ao pontífice e apresentam os grupos nacionais presentes no auditório, um a um, divididos por idiomas: inglês (para os americanos, britânicos, australianos, canadenses, mas também os japoneses e europeus do Norte), francês, italiano, alemão e espanhol (entre os quais são citados os visitantes de língua portuguesa).

Ao serem apresentados, os grupos gritam, aplaudem ou cantam, como num auditório de televisão. O papa observa monotonamente e, de quando em quando, abana com dificuldade a mão, saudando-os. Tanto mais fortes são as manifestações dos grupos, mais elas parecem despertar João Paulo 2º de sua letargia física.

No dia 13 de março, a audiência inteira durou uma hora e meia. O papa resistiu bravamente à cerimônia. Visto de perto, percebe-se que João Paulo 2º, de 81 anos, está gravemente doente, com as complicações de seu mal de Parkinson e outros males da velhice, sobre os quais a imprensa italiana vive fazendo suposições.

Chega a perturbar o esforço a que o papa é submetido no ritual, enquanto os padres que o cercam cumprem tudo aquilo com frieza e hierarquia. João Paulo 2º move e fala com imensa dificuldade. As palavras parecem sair da sua boca como da de um autômato. Sentado no trono papal, com a cabeça tombada para o lado, ele praticamente só mexeu as mãos -seja para passar as páginas dos papéis que entregavam a ele, seja para levar o lenço aos lábios, a fim de evitar que a saliva lhe escorresse pela boca.

A semi-apatia a que está reduzido em nada diminui a força mítica deste homem para a platéia, que o recebe aos gritos e com emoção. Ele não é tanto um homem, mas um símbolo, como se sabe, ou a encarnação de um símbolo, e é como tal que é cultuado. Não deve estar longe, contudo, o momento em que ele deixará esta vida, apesar da resistência que ainda demonstra.

Durante a audiência, também fica claro que, apesar de exercer o papel de chefe da Igreja, João Paulo 2º é apenas uma peça de um mecanismo descomunal, cujo funcionamento segue a regularidade e a confiança adquiridas em quase dois milênios de existência. A indiferença do séquito papal com os tormentos físicos de João Paulo 2º indica que estão todos ali para colocar em marcha esse mecanismo, não deixá-lo parar, não importa de que maneira.

A mídia às vezes divulga que a cúpula do Vaticano está pensando em "aposentar" o papa, dado o seu estado físico. É improvável. Mas uma futura incapacitação total de João Paulo 2º, caso ele entrasse num estado de saúde vegetativo, colocaria para a Igreja um problema histórico muito difícil de resolver. A solução teria que preservar a autoridade simbólica do papa, mesmo com sua decrepitude absoluta. Não existe vice-papa. Não existirá.

Curiosamente, na audiência daquele dia, os grupos mais numerosos de "peregrinos", como são chamados, vinham dos Estados Unidos, país de formação protestante. Foram apresentadas dezenas de associações católicas de variados estados norte-americanos, numa enumeração demorada: Arizona, Nova York, Flórida, Wisconsin, Califórnia, Ohio, Illinois... Só rivalizavam com eles, em número de associações e turmas, aquelas vindas das diferentes partes da Itália. Ali, no Vaticano, os Estados Unidos demonstraram que também são uma potência católica.

É bastante provável que os EUA tenham papel predominante na escolha do próximo papa. Não no sentido exclusivo de Washington influenciar sobre o Vaticano, mas de a "questão norte-americana" ser um fator crucial para a eleição do substituto de João Paulo 2º, que foi aliás um colaborador de primeira grandeza para a demolição do Estado soviético, desde o início de seu pontificado, em 1978.

O futuro Sumo Pontífice deverá ser alguém capaz de manter um diálogo privilegiado com o império norte-americano, a fim de preservar a autonomia e a influência da Igreja, ela própria um império espiritual e político, o mais duradouro de todos.

Esse diálogo será tanto mais fecundo quanto melhor os dois impérios conseguirem unir esforços para o enfrentamento capital de ambos no século 21: contra o expansionismo islâmico. Para Washington, em nome do Islã se organiza hoje a forma mais ameaçadora de anticapitalismo e antiamericanismo. Para o Vaticano, essa religião sempre foi o principal rival histórico da Igreja Católica, em toda a sua história.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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