Pensata

Alcino Leite Neto

29/03/2002

Onde estão os filmes de amor?

Paris tem 500 filmes em cartaz, mas quem quiser ver filmes de amor tem que ir atrás dos clássicos da Cinemateca Francesa ou dos cineclubes do Quartier Latin. Não tem coisa mais fora de moda no cinema do que o amor, o amor mesmo, não o das telenovelas, mas o amor-paixão, capaz de destruir um mundo e construir um outro.

Há filmes de todo tipo em Paris: faroestes futuristas, perversões complexíssimas, desenhos digitais, dramas no gelo e no deserto, aventuras de gangues e matemáticos. Mas de amor, quase nada.

"Elogio do Amor", o filme extraordinário de Godard, não tem nem um beijão sequer. O amor do título é mais ou menos sobre as relações entre o mundo anglo-saxão e a França e o continente europeu.

Em "O Fantasma", do português João Pedro Rodrigues, muito elogiado por aqui, um lixeiro misantropo, adepto de vestimentas de borracha e apaixonado platonicamente por um nadador, resolve armar para si uma punição grandiloquente, misturando-se ao próprio lixo da cidade.

"Mulholland Drive", de David Lynch, é um melodrama magnífico, mas não sabemos nunca do que está tratando. Talvez seja um filme de amor, talvez seja um filme policial, talvez seja os dois.

O espectador fica comovido diante de algumas cenas sentimentais, mas depois se pergunta: o que de fato me tocou? A incerteza é a chave do filme.

"Moulin Rouge", que ainda está em cartaz em Paris, parece uma história de amor, mas quem acredita naquilo, na paixão do protagonista manifestada entre rictos irônicos?

Outro dia, num dos cineclubes, passou "Aurora", o clássico de Murnau. É uma das mais belas histórias de amor já narradas. Havia gente no cinema que ria do filme.

"Aurora" tem menos de cem anos (é de 1927), mas tudo nele parece de uma era distantíssima: o sorriso angelical da mocinha, o pânico expressionista do mocinho, os olhares de repreensão e de culpa, as regras do sistema moral, os contorcionismos da sublimação, o confronto maniqueísta entre sexualidade e casamento...

O que comove, então, neste filme sobre um homem do campo que, apaixonado por uma mulher da cidade, cogita em matar sua esposa provinciana? Olhando detidamente, percebe-se que, ao mesmo tempo em que o realismo de "Aurora" foi se esvaindo, a sua condição de fábula foi se agigantando.

"Aurora" é uma fábula sobre a reconquista, sobre como um casal pode resgatar a paixão que os inflamou um dia. Aquilo que nos emociona no filme é a luta de um homem e de uma mulher para recuperarem a graça e a força inicial do seu amor. Isso é possível, nos diz Murnau, mas apenas se eles derem por encerrado um período de sua vida.

Ou seja, se um deles estiver disposto a matar o outro. Se, simbolicamente, um crime for cometido e, depois, o outro fizer sua reaparição como um verdadeiro ressuscitado _e uma nova vida entre eles tiver início. A moral dessa fábula é que o amor depende da vontade de recriar a vida.

Em outro filme do cineclube, "Quarenta Rifles" (Forty Guns, 1957), faroeste de Samuel Fuller que reestreou em cópia nova em Paris, a história de amor também acaba predominando sobre as disputas entre os caubóis. Um homem e uma mulher maduros, já sem ilusões, que redescobrem o amor no meio dos tiroteios.

Numa das cenas magistrais do filme, depois de um beijo devastador, quando os dois se dão conta que se apaixonaram, um furacão poderosíssimo varre o rancho no Arizona, arrastando tudo com seu fôlego. No final do filme, Barbara Stanwyck sai correndo atrás da carroça de Gene Barry, aos gritos: "Me espere!". Vai embora com ele, deixando tudo para trás. São histórias exemplares que um dia foram contadas para mostrarem que a vida pode ter a força de um furacão.

Um dos raros filmes atuais de amor em cartaz em Paris é o japonês "Audição", de Takashi Miike, que a crítica francesa adorou. Um empresário de mídia se cansa da sua viuvez de anos e resolve encontrar uma namorada. Ele não quer errar, contudo, quer achar de uma vez a mulher certa para si.

O que ele faz? Organiza com a ajuda de um amigo um pretenso concurso de atrizes para o papel principal num drama de televisão. Recebe os currículos. Entrevista as garotas e, entre elas, descobre uma pós-adolescente angelical, que corresponde em tudo à sua fantasia. Envolve-se com ela. Apaixona-se até a loucura. Um dia, a garota desaparece. Ele vai ao seu encalço, seguindo as poucas pistas que deixou. Descobre um mundo estranho e sombrio.

A garota reaparece certa noite. Invade a casa do empresário, em vestimentas negras sadomasoquistas. Ataca o amante, imobiliza-o com uma injeção e, lamentando que ele a tenha usado para o sexo, fingindo amá-la, abre uma valise onde estão dezenas de agulhas pontiagudas. Vai espetando uma a uma sobre o corpo do homem, que se contorce de dor, sem poder gritar. O abdômen, o peito, as bochechas, as pálpebras _ele fica cravado de metais. É uma cena asfixiante de tortura. Algumas pessoas em Paris saem da sala do cinema.

"Audição" é um filme de amor, cujo desfecho patético não deve ser encarado moralmente. O empresário japonês evitou, sim, os riscos de um amor às escuras, fazendo uma seleção de candidatas para o seu investimento sentimental.

Mas, por fim, ele se apaixonou como qualquer um, e a sua punição é o desfecho do próprio sentimento: é sua necessidade. É o sofrimento por que todo amante passa e precisa passar. A ênfase do diretor na tortura é quase uma demonstração alegórica de como não se pode exigir do amor que ele seja asséptico, sem uma boa dose de dor.

A economia psíquica atual manda as pessoas evitarem o sofrimento e buscarem aplicações de retorno seguro e satisfatório, como o trabalho, para onde vai hoje o principal do investimento emocional pequeno-burguês.

É toda uma lógica mercantil aplicada à subjetividade. Neste sistema, o amor tende a se tornar cada vez mais uma despesa ociosa, inútil, maldita, pois implica sempre numa disponibilidade vã, num risco interminável, numa aplicação no escuro, numa perda contínua de si e do seu mundo.

Implica também no tormento mental, na dor física, na confrontação com a morte, em suma. Pouca gente se dispõe a tanto, hoje em dia. Somos todos pragmáticos, higienizados e felizes.

O amor já foi destrinchado por filósofos, sociólogos e psicanalistas. Há milênios, ele vem sendo sistematicamente condenado na sua condição de amor-paixão como fonte de egoísmo, de sofrimento, de erro moral e de desequilíbrio psíquico. Atualmente, até os artistas têm receio de se imiscuirem no assunto: o amor virou kitsch.

De certa forma, contudo, o amor-paixão permanece uma das principais manifestações da vontade de viver para o sujeito _e da vontade de mudar a vida. Que ele apareça tão pouco nos filmes é um sintoma. E qual o diagnóstico? É que o cinema está ficando cada vez mais sem graça _e a vida também.


Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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