Pensata

Alcino Leite Neto

19/04/2002

Como os franceses humilham os seus líderes

As eleições presidenciais francesas estão sendo consideradas as mais enfadonhas de toda a história. Mas não era para ser assim.

Há 16 candidatos no páreo! É o maior número de concorrentes de todos os tempos na França. Existe até mesmo um candidato da "caça e pesca". Com tantos matizes ideológicas, da extrema-esquerda à extrema-direita, o debate político poderia ser dos mais ricos.

Fora isso, a França e mais 11 países acabaram de implantar o euro (em 1º de janeiro) e a União Européia ainda está em formação. O destino político e econômico da Europa e da França num mundo capitaneado pelos Estados Unidos seria um outro tema fértil para os debates.

As imigrações também não cessam sobre o território francês. A integração dos estrangeiros ao mercado de trabalho, à escola e à vida social deveria ser um dos assuntos capitais dos políticos. A França do futuro será um dos pólos multiculturais mais fervilhantes do mundo globalizado.

O legado cultural francês é uma das coisas que o mundo mais estima no país -sejam a literatura e o cinema, sejam a alta costura e a culinária. Tudo está bastante ameaçado pelas pressões de mercado e as concentrações do capital. Nada disso também veio à baila nas discussões dos candidatos, com a firmeza que se esperava deles.

Praticamente todo o temário das eleições concentrou-se na questão da segurança, dado o aumento da violência comum no país, que nem é tão grande assim, mas catalizou as atenções da mídia.

Mais sério até do que isso foi o vasto número de agressões antisemitas cometidas recentemente -com destruições de sinagogas, de ônibus de escolas judias, profanação de cemitérios e ataques pessoais. Os candidatos foram quase todos reticentes a respeito, deixando passar ao largo uma ampla discussão sobre o racismo e a cisão "comunitarista" neste país, que preza como nenhum outro a integração republicana.

O enfado que tomou conta dos políticos e dos eleitores decorreu sobretudo da circunstância de que todos eles já sabiam o que lhes destinava a campanha presidencial. No primeiro turno (no próximo domingo), uma penca de candidatos, mas na segunda votação, inevitavelmente, o enfrentamento de dois nomes já muito conhecidos: Jacques Chirac e Lionel Jospin.

O conservador Chirac, 69, é o atual presidente do país. Comandou a França nos últimos sete anos, sem brilho e sem emoção. O socialista Jospin, 64, é o atual primeiro-ministro. Governou nos últimos cinco anos, implantou algumas mudanças importantes no país, mas não chegou a resolver questões sociais básicas (como o desemprego), dando a impressão de ter realizado uma gestão anódina e sem engajamento com as principais preocupações do país.

O resultado é que os dois somados alcançam no primeiro turno das eleições menos de 40% dos votos. Chirac tem entre 18% e 20% e Jospin entre 17% e 18% das preferências de votos, dependendo da pesquisa de opinião. Os totais são os mais baixos já obtidos pelos candidatos num primeiro turno na França. Os franceses dispersaram os votos entre os vários outros candidatos. Há algo de humilhante, politicamente falando, em saber que se atravessará uma parte do pleito com tão pouca adesão.

Na verdade, os franceses parecem de fato decididos a humilhar os seus principais candidatos, demonstrando claramente a eles na oportunidade do primeiro turno a falta de interesse que têm em suas figuras. No segundo turno, se curvarão à inevitabilidade da escolha entre um e outro, mas tendo já deixado explícito a sua indiferença.

Na segunda rodada (em 5 de maio), segundo as sondagens, Chirac fica à frente de Jospin com mínima margem de votos -51%. Tecnicamente, os dois estão empatados. Em termos gerais, a situação parece mais ou menos a mesma que ocorreu nos Estados Unidos no confronto entre George W. Bush e Al Gore: os votos serão contados com lupa.

Há lições originais a serem tiradas dessa situação francesa. A dispersão dos votos é uma estranha forma de protesto político -ou de pressão. Ela demonstra que a política é mais rica do que o esquema bipartidarista -centro-esquerda/centro-direita, ou social-democratas/conservadores, ou democratas/republicanos-, rumo ao qual caminham a passos largos todas as democracias ocidentais.

Na França, o vigor eleitoral dos partidos menores de direita e de esquerda no primeiro turno vai condicionar naturalmente os apoios para o segundo e as coligações de governo. Quando os franceses espalham os seus votos eles estão, também, fortalecendo outros ramos políticos que precisarão ser ouvidos e respeitados pelos partidos dominantes a partir de agora.

Tudo parece enfadonho e previsível neste momento, mas uma interessante cena política pode estar despontando na França. Ela indicaria o enfraquecimento dos "centros" políticos (centro-direita e centro esquerda), cada vez mais amalgamados e identificados entre si, e a reivindicação, por parte do leitorado, de vozes mais definidas e com mais personalidade na polifonia democrática.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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