Pensata

Alcino Leite Neto

03/05/2002

O movimento antiglobalização de Jean-Marie Le Pen

Le Pen não é perigoso. É perigosíssimo. Não tanto pelos votos de que dispõe, que ainda são minoria, nem pelo poder material de seu partido, a Frente Nacional, que não é tão grande assim. Menos ainda pelas brigadas paramilitares de brutamontes com as quais pode contar, hoje bastante desintegradas.

O que mais assusta é que a Frente Nacional tornou-se a extrema direita mais sólida do ponto de vista doutrinário de toda a Europa. O lepenismo é uma ideologia firme, fluida e em expansão, capaz de se infiltrar com grande facilidade em certos meios sociais, cada vez mais carregados de ódio e de ressentimento.

Este jornalista teve a oportunidade de conversar com vários militantes do partido, desde membros de sua cúpula até o zé-ninguém. Todos eles repetem automaticamente as idéias e as explicações formuladas pelo líder máximo, Le Pen, e o núcleo doutrinário da Frente Nacional.

As explicações dão conta de todos os problemas sociais e políticos da atualidade em oito ou dez fórmulas feitas. Elas são expressas pelos militantes da Frente Nacional com a segurança de alguém que encontrou a chave do presente e do futuro.

Le Pen é um excelente orador. Na forma do discurso, é um populista, capaz de ir direto aos assuntos concretos que interessam aos sujeitos comuns, mantendo ao mesmo tempo a distância da autoridade através da linguagem preciosista e kitsch de bacharel (ele estudou direito).

É também "popular". Ele mescla com grande virtuosismo e "timing" teatral a veemência do político à antiga com uma verve cômica quase incontrolável, que se esparrama em trocadilhos de toda espécie, em adaptações de gírias e máximas do repertório francês, com referências a personagens e tipos facilmente compartilhados pelas pessoas.

No conjunto, forma e conteúdo, seu discurso é de uma perversidade a toda prova. Ele trabalha com o déficit psicológico e cultural de seus eleitores, materializando alvos fáceis onde eles possam descarregar o ressentimento. Descortina o mundo como um cenário de decadência, desordem e deterioração dos valores, para surgir como um redentor bem-humorado e um organizador destemido. Aproveita-se da crise da vontade política na França, dos desacertos e embates entre as formações partidárias de esquerda e direita, para agredir o establishment político e o aparelho democrático.

Mas o mais espantoso, agora, é como Le Pen e a Frente Nacional adaptaram à sua ideologia as críticas e reivindicações do chamado movimento da antiglobalização. Assim, eles estão conseguindo confundir a sua doutrina com as cada vez mais propagadas atitudes antimundialistas e arrebanhar certa inquietação juvenil para a Frente Nacional. "Não queremos que todos os restaurantes do mundo se transformem num McDonalds", me disse um militante lepenista de 21 anos, Ramon, de Marselha. "Le Pen para mim significa o anticonformismo", afirmou Georges Moreau, 33 anos.

O lepenismo e os lepenistas também atacam a hegemonia política e militar norte-americana, o capitalismo transnacional que exaure as economias regionais e rebaixa a mão-de-obra. Eles criticam o processo de uniformização das culturas, a destruição do meio ambiente e por aí vai. O programa do partido prevê até mesmo uma taxa sobre a circulação de capitais internacionais especulativos, muito parecida com a famosa Taxa Tobin, defendida pelo grupo antiglobalizador de esquerda Attac.

É evidente que o antimundialismo de Le Pen é absolutamente diverso daquele professado pelos movimentos de esquerda. Le Pen no fundo quer reduzir na França toda influência externa, quer mandar embora os imigrantes, expulsar os judeus, proclamar a superioridade dos franceses e da raça branca, inventar novas colônias, impedir a livre associação e expressão, centralizar o poder, militarizar o Estado, em suma, destruir a democracia.

A esquerda antiglobalizadora, embora às vezes impregnada de ideologias extremistas, em geral não luta contra o fim das fronteiras e a mistura das culturas e das raças. Ela prega que essa mundialização seja feita de maneira economicamente justa. Quer valorizar o que é local, sim, mas para preservar a variedade do mundo, desfazer a hierarquia entre os povos e, no planeta multicultural, impedir que haja uma cultura dominante, que extermine com as demais.

Embora pareçam igualmente provincianos e muito tipicamente franceses, Le Pen e o agricultor José Bové, líder antimundialista, estão separados por um oceano de diferenças. E assim também está a antiglobalização da Frente Nacional daquela que emergiu em Seattle e se espalhou pelo mundo.

A doutrina lepenista, porém, é um sistema que está se alimentando, para outros fins, da mesma ansiedade contestatória que se desenvolveu ultimamente no mundo com a mundialização econômica. Le Pen já construiu, para o seu neofascismo, uma doutrina antiglobalizadora de extrema direita. Ele está enfrentando não apenas a direita de Chirac ou o socialismo de Jospin, mas também tenta roubar adeptos de José Bové nos rincões da França profunda e nos meios estudantis.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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