Pensata

Alcino Leite Neto

31/05/2002

Cannes, a capital da diversidade cinematográfica

O Oscar é um prêmio que os americanos dão à produção de cinema dos EUA, com uma exceção: a estatueta de melhor filme estrangeiro. Em Cannes, é o contrário. O festival francês é um evento dedicado à produção internacional. A Palma de Ouro, o prêmio máximo do festival, pode ser dada tanto a um filme russo quanto a um filme vietnamita. As demais premiações também.

Neste ano, o 55o. Festival de Cannes, que terminou no último dia 26 de maio, premiou com a Palma de Ouro uma produção franco-polonesa, "O Pianista", de Roman Polansky. O Grande Prêmio do Júri ficou com um filme finlandês, "O Homem Sem Passado", de Aki Kaurismaki. O prêmio de melhor direção foi dividido entre o americano Paul Thomas Anderson (por "Punch-Drunk Love") e o coreano Im Kwon-Taek (por "Bêbado de Mulheres e de Pintura").

Esse internacionalismo faz convergir para Cannes as principais produtoras e distribuidoras de cinema, bem como a maior parte da imprensa especializada. O festival é a melhor ocasião no ano para os vários produtores de diferentes países mostrarem, venderem e fazerem falar de seus filmes.

Inclusive para os dos Estados Unidos. A força da indústria americana de cinema, a maior de todas, é perceptível a cada momento em Cannes. Os grandes lançamentos de Hollywood são divulgados pelas suas companhias com cartazes na Croisette, a principal avenida da cidade. Estrelas do cinema americano comparecem com toda pompa e circunstância. Os americanos sabem que Cannes é uma excelente vitrine internacional para os seus filmes e aproveitam ao máximo a ocasião.

No comércio de cinema de Cannes, tudo é permitido. Nas mostras, contudo, os filmes americanos, bem como os dos demais países, só chegam depois de uma complexa seleção crítica _que tende a eliminar aquelas produções cujo único objetivo é a bilheteria.

O festival francês conseguiu, ao longo de mais de cinco décadas, firmar-se como um espaço ao mesmo tempo de cinefilia, debate e política do cinema, de glamour e estrelato, de marketing e comércio e também de discussões sociais e culturais.

No andar inferior do centro de imprensa e das salas de exibição, acontece uma enorme feira, com centenas de estandes de todos os países, onde são feitos os negócios, enquanto nos andares superiores do mesmo prédio diretores, atores, técnicos, produtores, jornalistas e críticos discutem os 22 filmes da mostra competitiva e os mais de 100 filmes das mostras paralelas.

Essa multiplicidade de interesses e de produtos, de origens e estilos, torna Cannes um acontecimento fervilhante, divertido e enriquecedor. Para os filmes, o festival é uma espécie de "teste", em que eles são submetidos pela primeira vez à avaliação da crítica, do público e dos comerciantes. Diretores e atores são projetados no estrelato em uma noite; outros caem no ostracismo com a mesma rapidez.

Um filme de produção modesta, mas estética ousada, pode de repente se transformar num objeto de grande curiosidade, se recebe o aval da imprensa francesa _que é a mais influente no festival, junto com a americana. Foi o que aconteceu com o filme "Japão", de Carlos Reygadas.

A boa recepção na imprensa também assegura a venda dos filmes e a sua distribuição mundial, como ocorreu com o brasileiro "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles. Outros filmes nacionais também foram vendidos para Inglaterra, França, México, Itália, Israel e para TVs de países da Ásia.

Tudo na cidade de Cannes está em função do festival, nos 13 dias do evento. Os hotéis ficam repletos de artistas, profissionais e jornalistas. Os restaurantes vivem em constante burburinho. As boates abrem-se para incontáveis festas, que também acontecem em iates e nas praias. Uma multidão de gente monta guarda desde o início da manhã para assistir a entrada das estrelas na seção de gala, à noite, na qual é obrigatório comparecer de smoking.

Para a imprensa, as seções começam às 8h30 e se prolongam durante o dia, até a meia-noite. Exibido um filme na mostra competitiva, segue-se a entrevista coletiva com o seu diretor e parte do elenco. Cinco salas (duas delas gigantes) exibem os filmes no Palácio dos Festivais. No mercado de cinema, outras sete salas mostram as produções para os distribuidores e compradores. As mostras paralelas se espalham por vários cinemas da cidade.

Foram apresentados mais de 700 filmes em Cannes. Eles levaram para a pequena cidade francesa à beira-mar uma multiplicidade enorme de culturas, expostas em variadíssimas formas de narração e de filmagem e provando que, apesar das aparências, o mundo está bem longe da uniformização. Pelo contrário: o multiculturalismo é cada vez mais impositivo no cinema e para o espectador, com a dinamização dos sistemas de produção dos países e das trocas internacionais entre os mercados.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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