Pensata

Alcino Leite Neto

07/06/2002

Elogio ao McDonald's

Cannes se transforma numa agitada cidade de bares, restaurantes e boates durante o período do festival de cinema. Seja dia, seja noite, os lugares estão sempre cheios. Para quem não precisa trabalhar e tem dinheiro, é uma farra contínua durante 13 dias. Os restaurantes, com frequência muito bons, servem a culinária francesa, italiana, árabe, japonesa e outras mais.

No último domingo do festival, porém, os restaurantes resolveram fechar as portas logo depois da meia-noite. Nas ruas já desertas da cidade, não havia nem um pequeno bar de esquina que estivesse disposto a servir um sanduíche ao faminto trabalhador, exceto aquele grande estabelecimento cheio de luzes e de gente, perto do cais: um McDonald's.

Abertíssimo e a pleno vapor, o "restaurante" americano permanecia funcionando à uma da manhã como se fosse meio-dia. As funcionárias continuavam solícitas, os sanduíches ainda escorregavam pelas esteiras, o gelo não havia acabado, os fregueses entravam e saíam, satisfeitos.

As opções gastronômicas não eram poucas: peixe, galinha, carne de boi e de porco, o famoso croque-monsieur francês adaptado à moda da casa, mais de cinco tipos de saladas, sem falar nas insuperáveis "pommes frites". Era possível até mesmo encontrar uma razoavelmente boa e gelada cerveja.

Entre os clientes, a variedade de tipos se impunha no ambiente agitado. Eram jovens, velhos, arrumadinhos, desfeitos, modernos, antiquados, dois patinadores, uma cigana e sua filha, um homem que falava sozinho, negros, brancos e pardos. Um grupo de jovens descendentes de árabes paquerava num canto. Ninguém parava na porta para consultar o preço dos cardápios. Ninguém olhava de soslaio o garçom para saber se ele era simpático ou não. Todos entravam como se tivessem num velho ambiente familiar.

Ah, a conta! Não passou de 6 euros (R$ 13,00), para uma verdadeira esbórnia alimentar de alguém que passara mais de 12 horas em jejum.

Na madrugada esplêndida de Cannes, cidade onde Le Pen obteve 30% dos votos no primeiro turno, batendo o próprio Chirac, é ali, no MacDonald's, que os solitários, os infelizes, os imigrados, os pobres e os famintos podem estar certos que encontrarão gentileza, companhia e comida por um preço razoável.

Não existe lugar mais democrático no mundo do que um McDonald's. Você quer encontrar os excluídos da França? Vá num dos restaurantes da rede, em Cannes, em Paris ou qualquer canto do país. Eles estão diante e atrás dos balcões de atendimento. Em terras fascistizadas, o McDonald's é mais do que uma lanchonete: é um refúgio.

ESTÔMAGOS FASCISTAS, OU A ATUALIDADE DE BRECHT

A passeata do partido de extrema direita Frente Nacional em 1º de maio, em Paris, começou às 9h. O então candidato à Presidência e líder do partido Jean-Marie Le Pen foi à frente, conduzindo mais de 100 mil pessoas por algumas ruas elegantes da cidade, rumo ao monumento de Joana d'Arc, na praça Concorde, e depois até a praça da Ópera.

Em quase todo o percurso, os restaurantes e cafés estavam fechados. Seja porque era feriado, seja porque não queriam ser importunados, os proprietários franceses resolveram abrir seus estabelecimentos mais tarde. Mas é também notória a antipatia que os gauleses têm pelo trabalho _quando podem dão um jeitinho de enrolar.

Ao chegarem à Ópera, por volta de 13h, famintos, os extremistas de direita porém tiveram a felicidade de encontrar várias barraquinhas de sanduíches instaladas provisoriamente no local por vendedores ambulantes. Eram todas elas comandadas por descendentes de imigrantes. Eles atenderam os estômagos neofascistas com prontidão e uma boa gama de opções alimentares.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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