Pensata

Alcino Leite Neto

14/06/2002

A morte é fotogênica

Uma jovem se afoga no Sena, seu corpo é resgatado pela polícia, levado para o necrotério, onde ninguém o reivindica. Ela é enterrada entre anônimos. O episódio poderia ser um fait divers obscuro ou o epílogo de um romance do século 19, mas se transformou numa duradoura lenda francesa. Por um simples e fundamental motivo. Um escultor fez a suposta máscara mortuária da jovem, representando-a com uma beleza a toda prova, feito uma virgem de Rafael.

A máscara mortuária da Desconhecida do Sena, como ficou conhecida a jovem, transformou-a em exemplo do sublime (conceito que já vivia sua crise), inflamando a imaginação de alguns escritores na primeira metade do século, como Rilke, Nabokov e Aragon. Ela também foi fotografada por Man Ray, que desconstruiu e reconstruiu a imagem célebre. Nesses últimos meses a máscara mortuária foi exibida na exposição "Le Dernier Portrait" (O Último Retrato), no Museu d'Orsay, em Paris.

A exposição reuniu obras representando mortos e feitas antes de eles cumprirem o caminho definitivo para o cemitério _pinturas, desenhos, gravuras, esculturas e fotografias. Havia um número tão grande de trabalhos (e há tantos outros com o mesmo tema que não estavam ali), que se poderia dizer que a representação de mortos constitui mais que uma curiosidade na arte: é quase um gênero (talvez maldito) de representação visual, como a natureza morta, sem trocadilho.

As máscaras mortuárias (uma tradição que se extinguiu) eram sobretudo de pessoas famosas, como Wagner, Verlaine, Chateaubriand, Gide e até Rodin. Já no fim do século 18, uma especialista nessa atividade se distinguia: a francesa Marie Grassholz, mais conhecida como Madame Tussaud, nome que adotou ao imigrar para Londres, onde abriu seu famoso museu de cera.

Grassholz fez a máscara mortuária de vários defuntos da Revolução Francesa, como Marat, em 1793, e Robespierre, em 1794. Como a cabeça das celebridades rolavam frequentemente naquela época, ela tinha um acordo (pecuniário, claro) com o carrasco Sanson, que lhe permitia moldar os rostos dos guilhotinados antes de eles serem enterrados.

A máscara mortuária encontra um rival poderoso na fotografia, que estabeleceu com os mortos uma relação até hoje pouco investigada. Victor Hugo, o francês mais famoso de seu tempo, teve também sua máscara final, mas são as fotografias de Nadar (1820-1901) que o imortalizaram no leito de morte. A família Hugo, aliás, cultivou bastante o hábito da foto derradeira. Vários de seus membros ganharam uma, inclusive Adèle H., morta num hospício, aos 85 anos.

Os fotógrafos em geral não pretendiam ocultar o trespasse de seus fotografados, que às vezes eram registrados no próprio caixão. Não foi esse contudo o caso de Kasimir Zgorecki (1904-1980), que por encomenda retratou nos EUA vários bebês e crianças mortos, mas com os olhos bem abertinhos, como se ainda respirassem.

Fazer um retrato no início do século ainda era uma ocasião rara para algumas famílias, por causa do preço. Não tendo podido registrar a imagem de seus filhos antes, elas aproveitavam então a última oportunidade para fazê-lo _como se as crianças ainda vivessem. O realismo fotográfico contribuía para essa ilusão.

A fotografia também documentou o escritor Jean Cocteau quando ele morreu em 1963, com emocionantes imagens obtidas por Raymond Voinquel. Cocteau, por sua vez, valera-se de sua pena de desenhista para registrar quase 20 anos antes a sua mãe, Eugénie Lecomte, no leito de morte.

A mãe de Cocteau não é a única genitora retratada no imediato pós-morte. Há várias outras mães no Orsay, a ponto de se cogitar se não são elas que primordialmente motivavam os artistas a tomar a decisão extremada de fazer um morto posar para eles.

Elas comparecem ainda num óleo de Ary Scheffer (1795-1858), num crayon de Medardo Rosso (1858-1928) e num retrato de James Ensor (1860-1949), entre outros. Há também uma "Mãe Morta e Criança" (1901), de Edvard Munch (1863-1944), artista obcecado com a morte e do qual a mostra exibe várias obras extraordinárias, entre elas a litografia "O Leito de Morte ou a Febre", de 1896.

Quando não são as mães, os retratados póstumos são as noivas, mulheres, filhos e parentes. Claude Monet (1840-1926) pinta sua primeira mulher em "Camille no Leito de Morte", com um vestido de noiva branquíssimo flamejando de pontos coloridos. Georges Seurat (1859-1891) imortaliza a sua tia em "Anaïs Haumonté-Faivre no Seu Leito de Morte", um crayon de grande dramaticidade.

Uma das surpresas da exposição, para quem não os conhecia, são os dois desenhos em que o doutor Paul Gachet (1828-1908) registrou o rosto morto de seu cliente mais famoso, Vincent van Gogh. O médico, que era também um amador de pintura e foi retratado por Van Gogh, assina as obras com o seu pseudônimo artístico, Paul van Ryssel. É curioso imaginar que alguém que tenha posado horas para um pintor decida tempos depois retribuir a ele na mesma moeda, fazendo-o posar para si, mas depois de morto.

Registrar a imagem de mortos não é algo que caiu totalmente em desuso hoje em dia. A exibição do Orsay, porém, não avança nos tempos atuais. Se fosse um pouco mais adiante no tempo, encontraria a fotógrafa americana Nan Goldin. Ela é uma das artistas que fizeram a ponte entre essa tradição secular e a imagem contemporânea, ao documentar sistematicamente a doença e a morte de vários de seus amigos, como Gilles e o casal Cookie e Vittorio, nos anos 80 e 90.

"O Braço de Gilles" (1993) é uma das imagens definitivas que Goldin produziu. Quando Gilles morre, ela desloca a sua câmera para o braço longo e esquelético do rapaz, fotografando-o entre as dobras do lençol branco. Mais que resultado de um gesto de pudor ou de um esforço de metonímia, a imagem resulta numa consolação sublime.

Faltou também na exposição do Museu d'Orsay a série "Minha Mãe Morrendo", do artista brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973). Ela acrescentaria à mostra uma obra esplêndida, acentuadamente moderna, que contém algo que as demais nem sequer cogitam: a ambição de retratar, pelo desenho, o trabalho da morte em processo, na duração da agonia _tentando conter o inevitável e ao mesmo tempo se entregando à sua lógica.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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