Pensata

Alcino Leite Neto

21/06/2002

A favor de Molière

Montagem de "Anfitrião" pelo russo Anatoli Vassiliev é uma das peças mais elogiadas na França

Não há coisa mais difícil de encenar do que o teatro clássico francês. Nas tragédias de Racine e Corneille, a exuberância do verso, rigidamente metrificado, é uma prova de fogo para os atores. Poucos resistem, alguns parecem que vão desmaiar, de tanto esforço que fazem para manter a respiração em ordem, ao mesmo tempo em que sustentam a sintaxe poética e a força dramática das falas.

Para o diretor contemporâneo, o classicismo francês é um tormento. A fala é tão impositiva, que parece monopolizar tudo na cena. O ator vira uma máquina de versos, e qualquer descuido da dicção faz a peça vir abaixo. Todo esforço de invenção _luz, cenário, a mise-en-scène enfim_ parece secundário diante do discurso-rei.

Com Molière, as coisas parecem um pouco mais simples, pois surgem versos quebrados e a expressão da comédia permite liberdades que não se teria nas tragédias. É esse autor também que melhor sobrevive ao paladar contemporâneo, pelas mesmas razões anteriores e por ter se aproximado mais do sentimento comum, não-aristocrático.

De fato, essa é a grande dificuldade do teatro clássico francês para nós. É um teatro em que não apenas o conteúdo, mas também a forma, buscam sempre a elevação, a distinção, a excepcionalidade.

Shakespeare, para pegar o notório contraponto, é mais comovente ainda quando decide que seus reis e príncipes serão tomados pelo sentimento comum, compartilhado pela maioria dos homens. O inglês viveu nos primórdios da formação do indivíduo moderno. Os clássicos franceses são da última grande época da nobreza no país.

Mas páginas e páginas já foram escritas a respeito, pelos maiores autores e os também os mais insignificantes. Não vale a pena acrescentar mais uma folha, mesmo que eletrônica, ao segundo arquivo.

O que interessa é a notícia de que, apesar das dificuldades, os clássicos franceses continuam a ser encenados _e sobretudo na França, obviamente. No fim do ano passado, a atriz inglesa Kristin Scott-Thomas, que vive em Paris, protagonizou "Bérenice", de Racine, na direção de Lambert Wilson. No ano que vem, Isabelle Adjani fará "Fedra", do mesmo autor, dirigida por Patrice Chéreau.

São alguns exemplos mais famosos. Outras montagens menores e com gente menos conhecida são realizadas regularmente. Na Comédie Française, uma espécie de templo teatral parisiense, Molière é uma presença permanente. E, ao contrário do Globe Theatre, em Londres, onde as montagens de Shakespeare em geral tentam se aproximar do que seria a encenação original do século 16, na Comédie os diretores têm total liberdade para levar ao palco os textos do século 17 com as novidades do teatro contemporâneo.

Foi o caso do russo Anatoli Vassiliev, com sua encenação de "Amphitryon", de Molière, uma das montagens mais comentadas e elogiadas dos últimos meses na França.

Vassiliev, que tem 50 anos, não mora em Paris, mas em Moscou. Lá, ele coordena um teatro, a Escola de Arte Dramática, que é ao mesmo tempo um laboratório de experiências cênicas. Ganhou vários prêmios na Rússia e outros países europeus, que o convidam frequentemente para dirigir em seus teatros. Seu repertório vai de Pushkin a Pirandello e Heiner Mueller. Fez várias adaptações de Dostoievski e Platão. Recentemente, encenou uma versão da "Ilíada" em Moscou. É um diretor-intelectual, autor de vários livros sobre a sua arte.

"Amphitryon" (1668), ou simplesmente "Anfitrião", em português, é baseada num delicioso episódio da mitologia grega. Zeus cobiça Alcmene, mulher de Anfitrião. A fim de transar com ela, assume a forma do herói, ajudado por Mercúrio, que por sua vez ganha o corpo de Sósia, o servo de Anfitrião. As confusões com a duplicidade, os enganos e as imposturas, as agruras da traição fazem a graça da trama. No final, tudo se ajeita e se conforma. Na mitologia, a noite de amor de Zeus e Alcmene gerará Hércules.

O tema foi objeto de "Anfitrião", do latino Plauto, e também de uma peça de Camões! No Brasil, rendeu uma comédia curiosa, "Um Deus Dormiu Lá em Casa", do dramaturgo Guilherme de Figueiredo, irmão do presidente João Batista e autor ainda de um saboroso, embora acadêmico, livro sobre a criação dramática, "Xântias", que pouca gente leu no Brasil.

A montagem de Vassiliev na Comédie Française luta bravamente contra a "academização" do texto de Molière. Ele criou um cenário exuberante (uma torre branca repleta de portas), que os personagens sobem e descem e de onde eles se lançam no palco, agarrados em cordas. As cenas de enfrentamento dos personagens são feitas utilizando-se um tipo de luta oriental, com longas varas de madeira. Os atores se movimentam no palco com grande energia, juventude e velocidade, evitando um pouco a postura hierática que frequentemente se adota na encenação do classicismo francês.

Vassiliev constrói tudo isso sem adaptar o texto, como às vezes ocorre no Brasil e em outras paragens. Sem acrescentar nenhum termo modernoso ou gracinha contemporânea, valendo-se do fato de "Anfitrião" ser uma comédia. A peça dura mais de duas horas e meia e segue à risca cada palavra. A dicção dos versos é toda ela pontuada de intervalos estranhos e imprevistos, de ruídos produzidos pelos atores com a boca, de deformações da sintaxe, ora por meio de prolongamentos longos da sílabas, ora por pontuações brincalhonas das rimas.

Vale a pena ler o que diz Vassiliev, no programa da peça:

"Durante muito tempo eu trabalhei sobre a prosa, mas, desde a minha infância me educaram para admirar a versificação. Sempre sonhei trabalhar sobre os versos. É uma forma fascinante. Ela consegue forjar, fixar e produzir em sequências muito breves espaços imensos e um enorme volume de tempo. Eu sou atraído pelas tragédias, os mistérios, as narrativas épicas porque elas se alimentam dessa forma; amo profundamente tudo que escapa ao universo civil e tem necessidade dos versos para se exprimir.

"Os versos de Molière são de uma qualidade única, inacreditável para o século 20 passado. Os entrelaces de rimas, de sílabas, de ritmos e de sentidos são de uma beleza impressionante. É preciso velar para que essa melopéia, muito bem assimilada pelos atores, não se congele numa tradição. Molière não teria sido Molière se ele não tivesse tido vontade de transfigurar tudo isso. Sua vontade teatral impõe, em 'Anfitrião', a manipulação desses versos estruturados em conversação por rimas e ritmos.

"Na condição de estrangeiro, eu escuto magnificamente essa língua, cuja grande riqueza está nas numerosas vogais. Seria preciso restaurar, no palco, as belezas arcaicas e à custa de muito esforço, porque a urbanidade fez perder o gosto desse arcaísmo. As vogais se tornaram então pálidas, usadas e têm tendência a se parecem umas com as outras. Se eu conseguir insuflar vigor nas palavras, estarei contente".

Vassiliev conseguiu. Seu "Anfitrião" é uma demonstração divertida e fervorosa de como é possível encenar o teatro clássico francês não contra ele próprio, mas a seu favor.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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