Pensata

Alcino Leite Neto

28/06/2002

Bollywood, a fábrica de sonhos populares

Você já viu um filme indiano? É provável que não. Fica na Índia, porém, a maior indústria de cinema do mundo. A revista francesa "L'Express" conta que em 2001 foram realizados por lá 1.014 filmes. A média semanal de público chega a 150 milhões de espectadores. Com uma produção maior do que a de Hollywood (300 filmes em média), a fábrica de sonhos sediada em Bombay ganhou o apelido de Bollywood.

O público indiano é fascinado pelas produções de Bollywood e já está de tal forma habituado ao seu modelo narrativo e cinematográfico que dificilmente um filme ocidental consegue encantá-los da mesma forma. O que os espectadores gostam nos filmes? A presença dos ídolos nacionais, as histórias fortemente melodramáticas, os vários números musicais que pontuam a história. Trata-se de um cinema largamente popular em seu próprio país e que adquiriu um excelente know-how técnico e narrativo para os seus propósitos.

Para o público ocidental, por outro lado, os filmes indianos podem ser uma experiência difícil. A narrativa parece antiquada, o ritmo é frequentemente lento, as motivações e os costumes escapam à compreensão, as interrupções musicais chegam a esgotar a paciência. Por isso, raramente esses filmes são vistos por aqui. Só costumam circular nos país vizinhos da Índia e também em alguns outros no Oriente Médio, como o Irã e a Arábia Saudita.

Não é o caso de "Lagaan", filme de Bollywood que faz sensação em Paris atualmente. Trata-se de uma superprodução, para os padrões indianos, de 5 milhões de euros (cerca de R 13 milhões), levemente adaptada para o gosto ocidental. Só na Inglaterra e nos países da Commonwealth, o filme já faturou cerca de 20 milhões de euros. Está estreando também nos EUA e na China.

É um dramalhão como só se vê em novelas brasileiras, e talvez nem mais aí. No fim do século 19, camponeses de uma cidadela são submetidos pelos ingleses colonizadores a um tributo anual que pagam com sua colheita de grãos. Como não chove na região há meses, estão privados do plantio e pedem a absolvição da dívida. O tirano inglês resolve desafiá-los a uma partida de cricket, jogo que os indianos desconhecem completamente. Se ganharem, estarão livres do imposto. Um terço do filme é a exposição do drama, outro terço é o esforço dos indianos para aprenderem o cricket, o terço final é a partida emocionante. No todo, o filme dura 3h40, uma saga sem fim, intercalada de vários números de dança e cantorias.

O filme é produzido e estrelado por Aamir Khan, um ídolo das multidões em seu país, que só consegue sair às ruas acompanhado de guarda-costas, tamanha a histeria das indianas. É um ator com cara de galã e ares de canastrão, capaz contudo de um grande carisma nas cenas. Muçulmano, ele contracena com Gracy Singh, uma sikh, que encarna com melhor resultado a mocinha apaixonada. O diretor Ashutosh Gowariker, por sua vez, é hindu. Ele filma com correção técnica e preciosismo visual kitsch, sem nunca perder de vista o sentido popular do espetáculo.

É inevitável, para o espectador brasileiro, a comparação com as telenovelas. Não é exagero imaginar que, caso a televisão não tivesse se desenvolvido tanto no Brasil, hoje a produção massiva de entretenimento visual no país viria do cinema. Nós teríamos no Rio uma Rollywood ou em São Paulo uma Sampollywood com os indianos tem a sua Bollywood, levando a cabo a constituição de um cinema popular no país, a partir do legado das chanchadas e do rádio, das histórias regionalistas e do melodrama urbano, como as telenovelas conseguiram fazer.

A situação hipotética indica, por consequência, que a televisão permanece o grande empecilho ao desenvolvimento de um cinema popular no Brasil. Os diretores brasileiros interessados na constituição de uma indústria de cinema no país, culturalmente vigorosa e de imensa irradiação no público, têm ainda muito trabalho pela frente _sendo a principal tarefa aprender agora com a TV e com a música o segredo de sua comunicação com os brasileiros, majoritariamente pobres, analfabetos e provincianos.


UM GÊNIO INDIANO
"Lagaan" não é o único filme indiano em cartaz em Paris. Está sendo exibida na cidade uma mostra de Satyajit Ray (1921-1992), diretor genial, dos maiores da história do cinema. Ray foi assistente de Jean Renoir quando este filmou "O Rio" na Índia. Enveredou pelo neo-realismo. Desenvolveu uma linguagem sem equivalente, de grande elaboração, capaz de conjugar tanto o seu olhar social quanto as suas preocupações metafísicas. "O Mundo de Apu" é um dos filmes de Ray que ninguém deveria deixar de ver.

Um livro sobre o diretor também acaba de ser publicado na França, "Satyajit Ray: L'Orient et l'Occident" (Ed. de la Différence/Les Essais), escrito pelo crítico Youssef Ishaghpour, que nada tem de indiano. É iraquiano (Teerã, 1940), de origem judia, vive em Paris, e é hoje um pensadores fundamentais do cinema.

Ishaghpour lançou no ano passado um estudo titânico sobre Orson Welles, em três volumes ("Orson Welles Cinéaste, Caméra Visible", Ed. de la Différence) e também um belo livro sobre o pintor Giorgio Morandi ("Morandi", Farrago Editions).

"LAVOURA" NOS "CAHIERS"
O crítico Thierry Jousse não economiza elogios a "Lavoura Arcaica", de Luiz Fernando Carvalho, no último número da revista "Cahiers du Cinéma". Reclama que o filme não tenha participado de festivais internacionais na Europa. Escreve: "À visão desse filme, ao mesmo tempo rigoroso e convulsivo, perguntamos que mistério fez com que escapasse a Berlim, Cannes, Veneza. (...) 'Lavoura Arcaica' é potente e sutil, brutal e sofisticado". O filme deve estrear em Paris em agosto.

SOBRAS DO "HUMANITÉ"
O mitológico jornal "L'Humanité" (A Humanidade), do Partido Comunista Francês, quase fechou às portas. Foi salvo pelo Estado francês, que liberou um empréstimo de 6,9 milhões de euros (cerca de R 19 milhões), a serem pagos em 14 anos. As dívidas do jornal chegavam a 11,1 milhões de euros em 2001. A tiragem não passa de 50 mil exemplares diários.

Financiado pelo Estado, o "L'Humanité" pretende contudo ser um "jornal da resistência" contra o supergoverno de direita de Jacques Chirac, reeleito presidente em 5 de maio. A crise do jornal veio junto com a do Partido Comunista, que teve uma violenta queda de votos nas últimas eleições francesas. Apesar disso, conseguiu eleger 20 deputados. Os votos foram em boa parte desviados para as extremas esquerdas trotskistas, diante das quais o PCF faz figura de moderado.

INTERNACIONAL POPULAR
A reemergência dos extremismos _tanto de direita, quanto de esquerda_ nas eleições francesas e a crise do Partido Socialista está provocando um grande debate na imprensa sobre a reconstrução da prática e do pensamento políticos. A reedição neste mês de "Origens do Totalitarismo", de Hannah Arendt, foi, por isso, saudada no país com estardalhaço. O livro saiu pela coleção Quarto, da editora Gallimard, editado junto com "Eichmann em Jerusalém".

Arendt também aparece como referência nas discussões sobre a violência, a imigração, o asilo e reconstituição da noção de "povo" (em termos não-nacionais), uma das questões quentes do debate político atual _os deleuzianos preferem a noção de "multidão". Arendt escreve em "We Refugees" (Nós, os Refugiados, 1943, citado por Giorgio Agamben): "Os refugiados caçados de país em país representam a vanguarda de seus povos".

E NO REINO DE HEIDEGGER...
O alemão Erdmann Sturm, professor de teologia em Münster, encontrou uma carta inédita de Thomas Mann, de 13 de abril de 1944, em que o escritor descreve o filósofo Martin Heidegger como um "nazi par existence" (por existência, em francês no original). A carta foi escrita a Paul Tillich, um teólogo que havia publicado na época um livro sobre o existencialismo. Segundo Sturm, trata-se do único documento até agora encontrado em que Mann deixa clara sua posição a respeito da adesão de Heidegger a Hitler.

A carta ironiza e critica também a filosofia existencialista alemã, considerada por Mann como uma "posição falsa, ultrapassada, que não correspondente ao momento histórico". O escritor faz um apelo à renovação da "bandeira" da razão e do progresso, "que pareceu em certo momento ridícula", escreve.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca