Pensata

Alcino Leite Neto

12/07/2002

A ocidentalização da Grécia e três temas espinhosos

As férias de verão começaram na França. Milhões de pessoas já estão deixando o país, outros milhões de turistas estão chegando. Muitos dos franceses vão para a Grécia, em viagens baratas de cerca de US$ 600, com tudo incluído, enchendo as ruínas helênicas de rostos gauleses.

Não são os únicos a partirem rumo ao mar Egeu. Perto da acrópole de Atenas, estacionam centenas de ônibus levando ingleses, americanos, espanhóis e outras nacionalidades. Todos sobem a colina das ruínas milenares amontoados em grupos barulhentos, que disputam entre si o melhor ângulo para as fotos.

A Grécia é um dos países mais pobres da União Européia (UE), que compreende 14 outros Estados. Sua incursão nesse complexo de nações dinamizou um pouco a economia local, mas ela está longe, muito longe, de atingir a prosperidade da Itália, da Bélgica e mesmo da Espanha.

Anualmente visitam a Grécia 12,5 milhões de estrangeiros _um número maior que o da população do país, de 10,6 milhões. O turismo ocupa 15% dos gregos e representa 16,3% do PIB (Produto Interno Bruto). Os visitantes ora adentram o interior do país para ver os monumentos históricos, ora se espalham pelas várias ilhas, a fim de curtir o mar esplêndido.

A Grécia, como se diz, é o berço mítico da civilização européia _e da cultura ocidental por consequência. Ela ficou porém muito tempo longe desta mesma civilização, em termos concretos. Instalada num "lugar nenhum" entre Ocidente e Oriente, entre capitalismo avançado e sociedade agrária, acabou por se tornar um lugar muito estranho, em que o passado remotíssimo disputa com o futuro.

É a União Européia que está "modernizando" a Grécia, economicamente. E são os turistas que a estão ocidentalizando de fato, culturalmente.

Pragmáticos, os gregos sabem que a sua bela língua é contudo uma barreira à incorporação ocidental e já estão adotando o inglês como segundo idioma _em vez de empregarem o de seus companheiros franceses, alemães ou espanhóis da União Européia. Nos outdoors em Atenas, frequentemente os anúncios publicitários aparecem apenas na língua de Spielberg, dispensando sem pudores o idioma de Platão.

Em Atenas, vão sendo construídas novas estações de metrô e viadutos. A Acrópole está sofrendo uma recauchutagem integral. No interior, as estradas passam por reformas. No caminho que liga um sítio arqueológico de 5.000 a.C. a outro de 500 d.C. os ônibus param para os passageiros beliscarem alguma coisa em lanchonetes modernizadas, como se estivessem numa rodovia do Texas.

A Grécia inteira se prepara para as Olimpíadas de 2004, quando o país vai firmar sua reinserção midiática entre os países modernizados. E assim as ruínas helênicas vão deixando de pertencer apenas à imaginação histórica para se incorporarem de vez à disneylândia turística do futuro.

Pseudo-Resistência
A "siesta" na Grécia é religiosa. Às 14h, as lojas fecham irremediavelmente as portas na maior parte do país, exceto em Atenas. Abrem às 17h e vão até as 22h, 23h. À primeira vista, parece um hábito ancestral, uma resistência dura ao ritmo atual do Ocidente. Mas, de fato, é algo que o turista vive como um exotismo, aceitando como parte natural e curiosa de sua viagem. Fora isso, na verdade, a "siesta" segue uma lógica comercial.

Nas pequenas cidades, as lojas são algumas das poucas opções de entretenimento para os turistas depois do jantar. Eles deixam os hotéis em grupos e passam as últimas horas do dia comprando suvenires. É preciso não subestimar o raciocínio capitalista dos gregos.

Xenofobia
A Grécia foi ligada à União Européia por razões históricas e simbólicas, mas fica bem longe, fisicamente, dessa comunidade, tal como ela está configurada até agora. Os países-membros atuais formam um bloco geográfico que vai de Portugal à Áustria. Entre esta e a Grécia, é preciso atravessar as fronteiras da Eslovênia, da Croácia, da Bósnia-Herzegóvina, da Iugoslávia, da Albânia e da Macedônia _países que estão ainda longe de se incorporarem à União Européia.

São deles que provém o maior número de imigrantes ilegais que vivem hoje na Grécia. Assim, o país vive problema assemelhado ao da França e da Alemanha, sem ser tão próspero quanto estes. A discriminação e a xenofobia crescem no país. Os vizinhos albaneses são os "ilegais" mais detestados, frequentemente associados à criminalidade urbana.

Novembro 17
Este é o nome do único grupo terrorista grego, que atua no país há 27 anos. É uma formação marxista revolucionária, como as que surgiram nos anos 70 e que permaneceu ativa até hoje. Cometeu durante todo esse período vários roubos e assassinatos, entre eles a de um agente da CIA e a de um militar britânico.

O bloco soviético veio a baixo, mas o Novembro 17 permaneceu vivo. A polícia parecia incapaz de reagir às suas ações, que foram transformando o grupo num mito de invencibilidade na Grécia.

No último dia 4, um acidente com um de seus membros levou a polícia a desbaratar parte da organização. Savvas Xeros montava uma bomba quando foi gravemente ferido. As investigações levaram a um apartamento, onde havia um verdadeiro arsenal de guerra e todos os arquivos das ações guerrilheiras. A notícia ocupou e ainda ocupa as manchetes de todos os jornais gregos. Nas ruas, era o assunto preferido dos helênicos. Na vida civil, Xeros, de 40 anos, era um pacato pintor de ícones religiosos.

Jogos Olímpicos
Em 2004, a Grécia deverá estar no centro do interesse das TVs e dos jornais esportivos de todo o mundo, com a realização das Olimpíadas no país. Na ocasião, com certeza se falará muito da história e dos mitos gregos relacionados aos esportes. Foram eles os criadores dos jogos olímpicos, no século 7o. antes de Cristo.

Na cidade de Olímpia, a 322 km de Atenas, restam as ruínas de todo um complexo esportivo criado pelos gregos, com uma pista para maratonas, uma arena para lutas, um centro de treinamento para os atletas, um "hotel", um templo, entre outros estabelecimentos.

Além de serem lembrados como criadores das Olimpíadas, os gregos também serão homenageados como fundadores da filosofia e do teatro e serão saudados como os pais da democracia ocidental, entre outros clichês. Difícil, contudo, será fazer o leitor contemporâneo compreender três pequenas coisas da cultura da Grécia clássica:

1. Por que os gregos proibiam as mulheres de participar dos jogos olímpicos, não autorizando nem sequer que elas assistissem aos torneios e condenando-as à morte, caso o fizessem;

2. Por que, sendo inventores da democracia, os gregos nunca pensaram em abolir a escravidão e raramente davam cidadania (e direito de voto) aos estrangeiros estabelecidos em suas terras;

3. Por que os gregos adoravam namorar rapazinhos de 12 a 18 anos, prática que era aceita e valorizada socialmente.

Na ocasião das Olimpíadas, a imprensa terá de queimar suas pestanas com os estudos de Jean-Pierre Vernant e Michel Foucault, entre outros, para poder dar conta de assuntos tão espinhosos.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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