Pensata

Alcino Leite Neto

19/07/2002

Os paraísos artificiais da literatura brasileira

Fora aquele escritor que tenha uma absoluta convicção de sua arte associada a uma indiferença psicológica pela consagração, o que é raríssimo, todos os demais esperam ser reconhecidos e estimados, mesmo que por poucos.

Há quatro maneiras objetivas, associadas ou não, de um escritor ser "reconhecido": pela posteridade, pela crítica, pelo público ou pelos amigos. Como a posteridade é incerta, a maioria dos escritores prefere assegurar o reconhecimento em vida.

No Brasil, por algum motivo, a nossa longa tradição de crítica literária acabou nos jornais e nas revistas, que são o ambiente privilegiado dessa atividade, por confrontar a obra do escritor com um grande número de leitores, servir de intermediação entre o autor e o mundo, ampliando assim o significado do seu trabalho e retirando-o do isolamento narcísico. Os jornais já não têm críticos literários vigorosos que atuem de maneira fixa, regular e independente.

A "função crítica" foi transferida nas últimas décadas à universidade, ficando em geral restrita ao meio acadêmico e só chegando esporadicamente à imprensa na forma de um ensaísmo excepcional, que, portanto, "excepcionaliza" o seu objeto (um livro, um autor).

Ao fazer isso, isola-o em caso único e/ou exemplar, superfaturando a encomenda e por consequência a análise crítica, que às vezes se sobrepõe ao próprio objeto em si. O escritor, reconhecido, agradece, mas fica a se perguntar quando terá um crítico de verdade _ou seja, aquele que lhe aponta problemas, equívocos, desvios, deficiências, em vez de no seu trabalho literário ficar buscando soluções.

De resto, o escritor brasileiro conta apenas com críticas amadorísticas e irregulares, de gente que não leu direito os seus livros, não adquiriu recursos teóricos para analisar ou não tem paciência de seguir rigidamente a produção literária brasileira, confrontando as obras. Ou sobra ainda, para o escritor, a crítica "camarada", de algum amigo, conhecido ou simpatizante, que será capaz de instrumentalizar a resenha para o benefício da notoriedade momentânea, apenas para constar na imprensa a publicação e acumular um pouco mais de prestígio _que todos sabem artificial.

Tanto melhor dessa maneira, pensa o escritor, do que ter uma crítica de ocasião que, por acaso, "fale mal". Mas as chances de que se fale "mal" do livro são remotas, em críticas dessa espécie, em geral feitas por gente apressada e/ou despreparada. Com receio de se arriscar demais, é muito provável que o crítico improvisado prefira um caminho inócuo ou superlativo.

Não podendo contar com uma crítica de verdade, o meio literário brasileiro é todo ele feito de hipocrisias, inseguranças, frustrações e desprezos mútuos. O mesmo crítico que ontem consagrou um autor nas páginas do jornal pode no dia seguinte confidenciar para um amigo que não gostou tanto assim do livro. Como todos agem de maneira parecida, é provável que ninguém esteja seguro do juízo alheio sobre um trabalho.

A situação é mais melodramática ainda entre poetas. A poesia, por ter circulação restritíssima e merecer muito menor atenção na imprensa, lança os autores em situação subjetiva de quase histeria, por falta de reconhecimento. Os poetas têm menos críticos ainda que os prosadores, e a maior parte deles passa a vida inteira sem ter uma avaliação desinteressada de sua obra _uma avaliação que não seja um complô entre amigos.

Sendo assim, o meio literário brasileiro é todo ele formado de pequenos grupos, da Academia Brasileira de Letras às editoras de fundo de quintal, que se auto-reconfortam e se autopromovem, à maneira das seitas. Frequentemente, esses grupos criam rivalidades ferozes entre si, uma outra maneira de se valorizarem e se imporem no ambiente adverso.

São paraísos artificiais, pois na verdade o escritor brasileiro caminha entre as trevas da frustração como uma alma penada. Acaba asfixiado pelo seu próprio clube, perdendo a energia e a singularidade _ao ponto de, situação deprimente, receber como um sopro de vida, sinal de estima desinteressada e indício de imortalidade a citação de um trabalho seu numa apostila de cursinho pré-vestibular.

Não dispondo de crítica, o escritor poderia então encontrar algum consolo no julgamento objetivo do mercado. Mas a literatura brasileira quase não existe nas livrarias do país. Há editores que se esforçam por publicá-la, mas não havendo um programa educativo disposto a promovê-la ou um sistema midiático interessado na sua discussão, os livros ficam mofando nas lojas. É um círculo vicioso, que só vai ampliando as dificuldades de interlocução do escritor com o seu público e transformando a literatura brasileira numa excentricidade.

A indiferença internacional pela literatura brasileira e o isolamento provinciano reforçam o sentimento de insignificância do escritor, fazendo com que ele vá se desinvestindo psicologicamente da tarefa de realizar uma obra de grande estatura e importância.

Por fim, todos vão se tornando medíocres laureados entre si. São pouquíssimos aqueles que, sendo bons escritores, conseguem enfrentar tal situação, resistir e sobreviver. Isto é: fazer sua obra sobreviver.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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