Pensata

Alcino Leite Neto

26/07/2002

Hollywood busca seus novos vilões

O cinema americano é também a longa história da representação de vilões nacionais, da criação fantasmática de inimigos do povo dos Estados Unidos. A cada época do século 20, eles assumiram diferentes configurações no cinema, em decorrência do estágio de produção da identidade americana, das paranóias sociais e das necessidades de propaganda política transferidas à Hollywood.

Nos primórdios de Hollywood, um dos vilões nas telas chegou a ser o próprio negro ou a raça negra, como em "O Nascimento de uma Nação" (1915). Este filme de David Griffith é uma das obras capitais do cinema por ter firmado todas as regras narrativas e dramáticas básicas do filme clássico. É também um filme bastante reacionário porque não hesita em representar os negros como a praga da América branca e fazer uma verdadeira apologia da Ku Klux Klan.

No cinema mudo proliferam também vilões de todo tipo, como o ladrão, o alcoólatra, o carreirista, a mulher sem escrúpulos, o jogador, o negociante ganancioso, o marido ou a esposa infiel _todos formando uma galeria de antípodas à moral dominante do trabalho, da família e da poupança.

Naqueles anos, em que o cinema era como a televisão para as grandes massas urbanas, os filmes serviam em grande parte, na forma de entretenimento, de "propaganda" dos valores americanos tanto para a maioria da população nativa dispersa pelo território continental quanto para as levas de imigrantes ignorantes do inglês que podiam "ler" nas imagens as regras morais e políticas do país para onde tinham mudado.

No fim dos anos 20, o gângster se torna o "inimigo público número 1" e salta das páginas policiais da imprensa para o cinema. Os filmes de gângster se tornam uma mania e um gênero, extravasando os medos urbanos após o crack econômico de 1929. Nasce toda uma estética da violência e do submundo no cinema e um modelo de bandido psicologizado, mais adequado à fatura individualista da cultura americana. Chama-se, aliás, "Inimigo Público" um dos primeiros grandes filmes de gângster, realizado em 1931 por William Wellman, e no qual o vilão é o contraponto criminal e charmoso do capitalista _o que iria chamar a atenção de Brecht, que desenvolveria em algumas de suas primeiras peças a faceta anticapitalista dos bandidos.

Chega a Segunda Guerra, e os nazistas se tornam naturalmente os vilões do cinema americano, numa infinidade de produções. É desta época a convocação feita pelo governo a vários diretores, como John Ford e Howard Hawks, para que realizassem filmes de propaganda antinazista. A indústria cinematográfica americana também aproveita a interrupção da produção de filmes na Europa para ocupar os espaços de exibição mundiais e, por meio do cinema, difundir o seu modelo político e cultural. É impossível distinguir em alguns filmes do período, inclusive nos musicais, se são simples obras de entretenimento ou se são propaganda.

No início da Guerra Fria, os comunistas e seus aliados são os novos bandidos. Aparecem também os primeiros delírios paranóicos de invasão dos Estados Unidos, de destruição do país pela bomba atômica e de disseminação da ideologia comunista entre os americanos _circunstância complexa de representar e que na maioria das vezes adquiriu a forma de fábula ou alegoria cinematográfica que mostrava corpos sendo invadidos por forças alienígenas, devorados por plantas e seres aberrantes ou submetidos a mutações. Data dessa época o desenvolvimento do filme de espionagem, já praticado desde a Primeira Guerra, que encontra um meio fértil na atmosfera de segredos, intrigas, conspirações e tensão política interminável da Guerra Fria.

Ao mesmo tempo, vai terminando a era dos estúdios em Hollywood. O sistema tradicional de produção de filmes entra em crise. Uma geração inteira de "diretores críticos" passa a questionar o classicismo hollywoodiano e a refletir nos filmes sobre as mudanças de valores na América. A crítica se acentua nos anos 60/70, quando o próprio sistema político e econômico dos EUA passa a ser o vilão do cinema e o homem americano comum, ele mesmo, impregnado dos valores convencionais, é transformado em alvo de críticas.

A tendência se acentua após a Guerra do Vietnã, que é uma espécie de Guerra do Peloponeso para o cinema moderno americano, a fonte de uma série de tragédias cinematográficas que, nos melhores filmes, interrogam os fundamentos da formação americana e a desmesura da dominação imperialista.

Com a queda do Muro de Berlim, o cinema americano começa a ter muitos problemas para encontrar "o" inimigo _aquele substrato narrativo que permite a manutenção do conflito nos filmes. O país vive a era neoliberal e politicamente correta, com a plena expansão de sua hegemonia ideológica e econômica. Os vilões raramente surgem, então, como antagonistas de um programa político. Com frequência são individualistas exasperados, doentes mentais, serial killers ou fantasmas _formas variadas de um inimigo dessocializado, que não atua em nome de nada, exceto de seu instinto, de sua vingança e de sua loucura. O caso paroxístico dessa tendência é "A Bruxa de Blair", em que jovens passam o tempo todo lutando e tentando sobreviver a algo que os ameaça e que lhes é absolutamente desconhecido.

Seria preciso restabelecer no plano da narrativa coletiva o maniqueísmo para poder rematerializar a figura de um inimigo público na América. Foi o que aconteceu após 11 de Setembro, data do ataque ao World Trade Center, em Nova York. Quando Bush definiu o "eixo do mal", dividindo o mundo entre os que são a favor e contra os Estados Unidos, ele reanimou de certa forma a representação hollywoodiana, definindo também para ela um conflito.

Mas qual vilão? Abordar assuntos geopolíticos no cinema americano virou assunto delicado, uma vez que qualquer filme dos EUA com esse teor está sempre sobredeterminado pela estratégia do "eixo do mal". Por isso a CIA passou a colaborar em vários filmes que abordam conflitos internacionais ou dramas que evocam o terrorismo ou a guerra, como descreveu reportagem do jornal francês "Le Monde" no dia 24 de julho.

Além disso, os filmes retomam a sua função propagandística, num mundo em que a campanha militar americana precisa ser bem sucedida. Diretores são novamente convidados a realizar produções com objetivos "estratégicos". A fetichização do universo político e militar americano é implementada, bem como a idealização do herói e do sacrifício pela pátria.

Quanto ao inimigo, ele é claramente o "terrorista". Mas o terrorista precisa ter um "conteúdo" político. Qual é o conteúdo? Não pode ser o credo muçulmano, para não agravar as tensões entre os EUA e parte do mundo árabe. Também não faz sentido evocar o extinto ideário comunista. Definir conteúdos-antípodas à cultura americana também ficou complexo. Em termos gerais, para efeito de compreensão massiva, o inimigo nos filmes geopolíticos é aquele que agora ameaça fisicamente, dentro do próprio território dos EUA, com um ataque desmesurado, a maior quantidade possível de americanos.

No caso de "A Soma de Todos os Medos", esse inimigo é um grupo de neonazistas europeus. O filme de Phil Alden Robinson, feito com assessoria da CIA e com claros objetivos propagandísticos, evita estigmatizar árabes e russos e encontra no ressurgimento da extrema direita na Europa o inimigo ideal. Os neonazistas tramam um ataque aos EUA, a fim de parecer que foi obra da Rússia, colocando assim um país contra o outro.

"Hitler errou ao tentar enfrentar os Estados Unidos e a Rússia. É melhor fazer com que (as duas potências militares) se destruam mutuamente", diz o líder do grupo neonazista.

A trama é desbaratada, mas não antes que a cidade de Baltimore seja destruída por uma bomba atômica. Na lógica do pior, o cinema americano parece dizer, hoje: uma cidade se sacrificará, mas para que o país inteiro possa sobreviver e, por consequência, o mundo.

O que parecia intolerável há pouco tempo para o cinema _a destruição atômica de uma cidade americana_ é mostrado agora como um ataque grave, porém menor, diante da ameaça superior que está por vir. Mau sinal.

É interessante o modo como os vilões neonazistas europeus são representados no filme. Eles são sujeitos requintados, que vivem em casas com mobílias finas e antepassadas, debatendo em vários idiomas _alemão, inglês e francês. Um deles ouve ópera _o neonazista sul-africano, ali colocado para amenizar a presença de tantos europeus. O fascista francês, por algum motivo, não compactua do plano diabólico do chefe austríaco do grupo. É óbvio no filme a idéia de representar o clã neonazista europeu com uma atmosfera de decadência e antiguidade associada à cultura erudita e ao refinamento. Os americanos são ligeiros, juvenis, despojados e sem preconceitos. O presidente americano, numa cena crucial, vai a uma partida de futebol americano, acompanhado de seu melhor amigo, um secretário de Estado negro, como Colin Powell.

Também é interessante ver como é representado o governo da Rússia. O presidente russo esconde para os americanos que fala inglês, como se ocultasse algo de sua ocidentalização. No poder, ele é atormentado por generais rebeldes, que reagem belicosamente aos tormentos separatistas nos fundos asiáticos do país. O aparelho militar americano é firmemente contrastado com o russo, que parece fora de controle.

É o caso de perguntar se, ao menos em "A Soma de Todos os Medos", o inimigo dos EUA não seria a própria Europa, imaginada como uma incubadora de fascistas e uma cultura ancestral onde grassa o antiamericanismo, mas de fato um ímã geopolítico que tende a atrair a Rússia para o seu concerto de nações. Se este filme não é, no fundo, um convite à americanização da Rússia, antes que ela implemente a sua europeização.

HOLLYWOOD E OS MILITARES

A relação entre o cinema americano e o Pentágono é tema do livro recém-publicado "Guts and Glory: The Making of The American Military Image in Film" (University Press of Kentucky), de Lawrence D. Suid. Segundo o "Monde", o livro mostra que as relações entre Hollywood e os militares remonta a "O Nascimento de uma Nação", de Griffith. Em 1915, engenheiros de West Point deram ajuda logística ao diretor para que ele pudesse construir cenas de batalha da Guerra Civil americana.

COLABORAÇÃO ESTREITA

A reportagem do "Monde", de Samuel Blumenfeld, conta também que o general John Ashcroft esperou a segunda-feira seguinte ao segundo fim de semana de exibição de "A Soma de Todos os Medos" nos EUA para anunciar a prisão do terrorista Abdullah al-Mujahir (José Padilha), do Al-Qaida, que estaria planejando um atentado aos EUA parecido com o mostrado no filme. O anúncio da prisão por Ashcroft foi feito, aliás, em Moscou.

Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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