Pensata

Alcino Leite Neto

02/08/2002

Deus morto, Deus posto

Aumentou na Europa o número de jovens entre 18 e 24 anos que acreditam na existência de Deus e no além. Ao mesmo tempo, diminuiu o número daqueles que se dizem ligados a alguma religião. O paradoxo foi constatado numa enquete da revista francesa "Futuribles" (julho/agosto), que publica regularmente sondagens sobre o estado dos "valores" europeus.

A pesquisa foi conduzida em duas décadas, nos anos 1981, 1990 e 1999, com o apoio de institutos de 12 países católicos e protestantes. As sondagens dos dois primeiros anos demonstravam um claro recuo dos valores religiosos na Europa. A última revela, comparativamente, o inverso: que está havendo uma recomposição das identidades religiosas no continente, segundo o sociólogo Yves Lambert, que analisou os resultados.

O número dos que declararam pertencer a uma religião caiu em todos os países, com exceção da Áustria e de Portugal. Na Grã-Bretanha, em 1981, 83% afirmaram estar ligados a uma igreja. Em 1999, apenas 75% disseram o mesmo. Na Espanha, foram 82% em 1981, contra 71% em 1999.

Os jovens franceses são os que menos declaram ter vínculos com uma religião _apenas 47% em 1999 (contra 56% em 1981). Na Dinamarca e na Áustria, esse índice sobe para 90%, em cada país (em 1999), o mais alto da Europa. Mais alto até que em Portugal, onde os adeptos de uma religião são 82%.

O número dos que acreditam em Deus, por sua vez, aumentou em seis dos doze países em 1999 _na Áustria, na Dinamarca, na França, na Itália, em Portugal e na Suécia_, invertendo a tendência de declínio geral entre 1981 e 1990. Em duas décadas, a crença em Deus diminuiu ligeiramente na Alemanha, na Irlanda e na Espanha. E diminuiu fortemente na Bélgica, na Grã-Bretanha e na Holanda.

A Irlanda é o país com o maior número de jovens que acredita em Deus _90%, em 1999 (contra 92% em 1981). Os jovens suecos são os que menos crêem na divindade _apenas 36% deles, em 1999 (contra 33%, em 1981).

A crença no além-túmulo, por sua vez, aumentou bastante em quase todos os países. Em nove deles, o número de jovens que acreditam no pós-morte passou, em média, de 38% (em 1981) para 44% (em 1999). Na França, saltou de 30% para 42%.

O curioso da pesquisa é a relação, muitas vezes contraditória, entre o número daqueles que, num determinado país, dizem pertencer a uma religião e os que crêem em Deus. Na Dinamarca, por exemplo, 90% declaram estar ligados a um credo, mas apenas 49% dizem crer em Deus. Na Alemanha, 78% confirmam seus laços com uma religião, embora só 53% tenham dito que acreditam num Criador. O fenômeno é mais frequente em países dominantemente protestantes.

O sociólogo Yves Lambert fez uma longa análise dos índices na revista. Ele acredita que, nos últimos anos, houve uma "tal supervalorização do êxito pessoal que o indivíduo aceita cada vez menos que tudo acabe com a morte". Na sua opinião, depois dos anos 90, a religião foi "liberada de seus concorrentes mais temíveis", como o marxismo e o racionalismo, e pôde "encontrar uma nova credibilidade".

Imaginar que o marxismo e o racionalismo tenham ameaçado a fé religiosa juvenil é um raciocínio secundário e talvez exagerado. O fato é que, entre as décadas de 60 e 80, o desenvolvimento econômico, técnico e social das sociedades européias, bem como a liberação sexual do período, reduziram bastante o espaço de insegurança, sublimação, medo e rancor propício à proliferação da fé religiosa.

Além disso, as grandes religiões históricas foram paulatinamente perdendo influência sobre a vida cotidiana. Até a década de 70, as igrejas costumavam ter, sobre as comunidades, uma autoridade absoluta, exercendo seu poder sobre a vida secular e também sobre as aspirações de transcendência. Quando os jovens resolveram contestar o modelo de existência que lhes era proposto, a partir da década de 60, isso implicou também em atacar o poder das igrejas e o modo como elas sufocavam a liberdade individual e alimentavam, por meio da superstição, do medo e da doutrina, a passividade e o conformismo dos sujeitos.

A refutação da existência de Deus acompanhou naturalmente esse "ataque" às religiões ocidentais, no meio juvenil. A idéia de um Criador-pai estabelecia uma estrutura hierárquica, parecida com a cena familiar também contestada, que precisava ser demolida.

Hoje, em decorrência do processo de desagregação social em larga escala e da marginalização dos indivíduos, as igrejas voltam a representar um espaço de confluência, convívio e reconforto mútuo. O "retorno à igreja" é frequentemente pragmático: é um modo de recompor "comunidades" e de restaurar a confiança em si. Nos países europeus desenvolvidos, os sujeitos tendem a adotar a doutrina sem dogmatismo e sem se sentirem constrangidos. Fazem-no sobretudo para estabelecer uma linguagem e um ritual comuns que os identifica.

Poucos se deixam atormentar pelo sentimento do pecado, durante séculos essencial à manutenção do credo católico, por exemplo. Sexo não é mais pecado. Deixar de ir à missa domingo não é mais pecado. O pecado praticamente desapareceu do mundo, no processo de desculpabilização psicológica geral das últimas décadas no Ocidente.

Um deus que não oprime e persegue, mas reconforta e alegra, é um mito bem mais interessante para os homens dessa época. Está em processo no Ocidente uma verdadeira reconstrução da divindade, na perspectiva do superindividualismo atual.

Deus sempre foi em boa parte um assunto privado, mas sua imagem e seu poder eram inoculados de fora para dentro do sujeito, da regra doutrinária da igreja para o mundo psicológico do crente. Hoje, Deus foi privatizado no sentido oposto: o crente constrói a imagem do deus que prefere, a partir de informações religiosas variadas, determina o poder que ele exercerá sobre sua vida e projeta essa imagem no espaço comunitário da igreja que escolheu, onde o padre ou o pastor organizará a confluência dos "deuses" de cada um num ritual único e associativo.

Dificilmente o aspecto "tribal" das igrejas será extinto das sociedades. Dificilmente também o anseio de transcendência da maioria dos homens será abolido por qualquer sistema filosófico ou científico. A vida, de modo geral e no sentido comum, é uma prática difícil e misteriosa.

Não são mais o pecado e a culpa que oprimem as consciências, mas as exigências contínuas, imediatas e evidentemente fantasiosas de prazer e felicidade. O apego atual à vida concreta não é aquele imaginado por Nietzsche de uma aceitação incondicional da existência na sua dimensão trágica. A crença na transcendência e no além passou a ser um modo de abolir a morte, de estender a vida ao infinito. Antes, era um modo de obter compensações futuras aos tormentos na Terra, considerados inevitáveis. Agora, já não queremos nem mesmo envelhecer para não deixar aos outros a parcela de prazer interminável a que julgamos ter direito, como consumidores da existência.

Poucos, muito poucos, são aqueles capazes de aceitar a tristeza, a dor e a fatalidade da morte como uma confirmação da riqueza da imanência do mundo e do valor da vida.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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