Pensata

Alcino Leite Neto

04/10/2002

A deusa BB ressurge no meio do povo

Um amigo me conta que sonhou com Stálin na semana passada. Com a sua autorização, relato o sonho ao leitor. Não há coisa mais tediosa, além de indiscreta, do que ouvir histórias do inconsciente alheio, mas achei que neste caso talvez valesse à pena: é um sonho de certo modo saboroso _provinciano, irônico, nostálgico. Vamos lá, pois não tenho coisa muito melhor a oferecer ao leitor na coluna de hoje. Espero que ninguém se canse.

No sonho do amigo, uma bruma invernal e soviética envolve a sua cidade interiorana. É de manhãzinha, e ele, criança, com o uniforme do colégio, corre pelas ruas, atrasado para a comemoração que acontece na estação de trem. Ao chegar, a professora lhe entrega uma caixa com um laço de fita verde-amarela e diz: "Não vai fazer feio, hein?!".

Na estação, avança uma locomotiva antiga, como nos filmes futuristas russos. Salta do trem uma multidão de soldados da Guarda Vermelha, como em "Doutor Jivago". De um dos vagões, desce Josef Stálin, uniformizado, com o seu farto bigode. A banda de música da cidade começa logo a tocar uma marchinha. O prefeito, com pose de JK, aproxima-se do líder soviético e lhe entrega a chave da cidade. De braços dados, os dois vão para um palanque na praça principal.

Na praça, uma multidão aguarda os discursos. O do prefeito é longo e bilaquiano. O de Stálin é curtíssimo: "Venho aqui, nesta pacata e aprazível cidade, para dizer aos brasileiros que nós, os comunistas, não comemos e jamais comeremos criancinhas". Aplausos.

O amigo-menino, segurando a caixa com o laço verde-amarelo, é levado até o palanque. Com voz forte, diz as palavras decoradas: "Camarada Stálin, pai dos povos, em nome das crianças do Brasil, queremos agradecer a sua visita e lhe entregar duas lembranças de nossa terra: a melhor goiabada da região e um long play da Jovem Guarda! Viva o Sputnik e o ieieiê!".

"Viva! Viva!", repete o público. Stálin abre um sorriso oceânico de dentes postiços. O prefeito abraça o soviético. A Guarda Vermelha solta tiros para o alto. A banda de música começa a tocar outra marchinha, quando chegam gritos do meio da multidão: "BB voltou! BB voltou!". Todos olham para o meio do povo, onde desfila a atriz Brigitte Bardot, no auge de sua beleza e gostosura, coberta apenas com um biquíni. O padre, ao lado de Stálin, exclama: "Milagre!". Acompanhada de um camponês mulato que leva uma enxada nas costas, Bardot sobe ao palanque, e como num filme da nouvelle vague sussurra ao microfone, com sotaque sensual: "O existencialismo é um humanismo, mon amour". O amigo acorda, assustado, excitado e suando frio.

O meu amigo, que já passou dos 40, me pergunta num e-mail: "Você consegue interpretar esse sonho?". Eu, arrogante, respondo logo: "Claro. Se a gente dispensar a psicanálise, é coisa simples. É o seguinte: só agora, nos próximos dias, a Guerra Fria e os anos 60 estarão de fato chegando ao fim no Brasil, entende? Você já está fazendo um trabalho carnavalesco de luto (sic!). A última utopia brasileira vai virar apenas uma monótona e convencional realidade, se já não virou".

O amigo me ridiculariza: "Não imagino que meu inconsciente seja tão presunçoso assim. Devo é estar com saudades de uma boa goiabada".
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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