Pensata

Alcino Leite Neto

11/10/2002

Clint Eastwood no coração do seu tempo

Clint Eastwood tem 72 anos e continua sempre a melhor novidade do cinema americano. Seu último filme, "Bloodwork", às vésperas de estrear em Paris e no Brasil, é de uma espantosa vitalidade. É também o trabalho de um erudito do cinema, de alguém que conhece e evoca uma amplíssima tradição do filme americano para avançar em terrenos insuspeitos, que só os espectadores desatentos ou com preguiça não conseguem ver.

"Bloodwork" (que passará na Mostra Internacional de Cinema com o nome de "Dívida de Sangue") é um thriller policial. A trama é engenhosa, mas a arte está alhures. Eastwood interpreta um agente do FBI que, logo no início do filme, durante uma perseguição a um criminoso, sofre um ataque cardíaco, deixando o bandido escapar. Faz um transplante de coração e se aposenta, indo morar num barco encostado no cais, onde ele também encosta a sua vida.

Um belo dia, uma "chicana" o procura, pedindo a ele que investigue a morte de sua irmã, assassinada aparentemente sem motivo, num assalto. Ele se recusa, explica que não faz mais esse tipo de trabalho, que está aposentado. A moça tem, no entanto, uma boa razão para o ex-policial aceitar o caso: o coração que ele carrega no peito é o da sua irmã morta, Glória.

Eastwood vai exclamar: "Glory's Heart!". A frase é ambígua e sintetiza o objetivo do diretor: "Bloodwork" é todo ele um filme sobre o coração, o fluxo sanguíneo, a corrente vital, a capacidade de viver e reviver, de escapar de uma vida para começar outra.

"Ganhei um novo coração, mas não uma nova vida", diz o ex-policial. Seu retorno à investigação criminal, que ele decide fazer muito a contragosto e o faz por decisão moral, vai devolver a ele aos poucos as forças emocionais e até físicas que perdera, bem como um certo valor da existência que havia ficado para trás. Mas fosse o filme apenas isso e ele seria de uma banalidade atroz. É muito mais.

O protagonista vai descobrir que a própria morte de Glória está relacionada ao seu transplante _ou seja, a sua sobrevida. Foi graças ao vilão do início do filme, um serial killer nunca capturado, que o policial pôde obter o coração que necessitava: o bandido matou Glória para "ressuscitar" o mocinho!

Estranhíssima dialética. Ela contrapõe o durão Eastwood a um bandido efeminado que tem por seu perseguidor uma paixão obsessiva, desejando mantê-lo a todo custo entrelaçado a essa narrativa de disputa e crime que, no seu entender, justifica a vida de ambos.

Vou poupar o futuro espectador de mais detalhes do filme. Mas permita-me falar um pouco da maravilhosa sequência final. No plano da ficção, é uma cena previsível, de confronto entre mocinho e bandido. Na construção formal, porém, é um "tour de force", como dizem os franceses.

Eastwood ambienta o embate derradeiro num navio em alto mar, iluminado com parcas luzes que espalham cores vermelhas e amarelas no fundo sombrio. Os corredores estreitos da embarcação servem de espaço labiríntico para o suspense. Os personagens em duelo somem nas dobras interiores do navio e ressurgem iluminados por flashs de luz. A invenção expressionista toma conta do ambiente que _o leitor já terá notado_ é uma alegoria visual das próprias entranhas por onde o sangue escorre.

O espectador pode assistir "Bloodwork" como um filme policial comum, sem se incomodar com o trabalho de cinema propriamente dito. Mas ganhará bastante se ficar atento à meticulosa elaboração de Eastwood. De resto, o diretor não chegou a dispensar suas gags de ocasião e um certo narcisismo irônico que lhe é próprio.

"Bloodwork" é um filme sobre a ressurreição. O tema já comparecera em outros do diretor, como "Os Imperdoáveis". Para um crítico, sua constância na obra de Eastwood está relacionada à maneira como ele se vê no cinema atual: como uma alma penada do passado do filme americano.

Mas do western "Os Imperdoáveis" ao policial "Bloodwork", a figura do "ressuscitado" mudou bastante. Eastwood deixou de se pensar apenas no interior do cinema para raciocinar em consonância com as dificuldades dos Estados Unidos e mesmo do mundo.

Que este símbolo americano por excelência que é Eastwood represente a si mesmo como alguém que tem no peito o coração de uma mexicana, isso é mais do que uma metáfora _é a adoção física do estrangeiro. Pode-se ver aí um efeito do Nafta na mentalidade hollywoodiana, mas seria demasiado mesquinho.

E se Eastwood estivesse de fato dizendo que é a abertura ao estrangeiro, o "transplante" do outro para dentro de si, que podem "revitalizar" e "rejuvenescer" os valores comuns americanos que ele tanto estima? Se ele estivesse dizendo que os Estados Unidos precisam do "outro" para poderem se livrar dos seus fantasmas interiores, de suas projeções psicóticas, da reiterada representação regressiva do velho cinema do bem e do mal?

Eastwood parece estar mexendo bem fundo no inconsciente americano, assim como o chinês John Woo no formidável "Windtalkers", que também estréia no Brasil neste mês _um filme que cutuca com vara curta as tripas belicistas da história dos Estados Unidos, ao levar dois índios (oops!) para o "front" americano no Pacífico, durante a Segunda Guerra. Mas vamos deixar o barroco Woo para um outro dia.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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