Pensata

Alcino Leite Neto

18/10/2002

A questão muçulmana, incluindo Houellebecq e Lévi-Strauss

Mais de um leitor deve ter se lembrado que os recentes ataques terroristas na Ásia foram antecipados pelo escritor francês Michel Houellebecq, nas páginas finais de seu último romance, "Plataforma", já lançado no Brasil. A questão, porém, é mais melindrosa: terá o escritor antevisto ou _arrisquemos_ terá seu livro servido de inspiração aos terroristas? Nessa época pós-moderna, nunca sabemos onde começa uma coisa e termina outra.

Na França, Houellebecq está sendo processado por entidades muçulmanas e de direitos humanos por incitação ao ódio racial aos árabes e ataques à religião muçulmana em uma entrevista à revista "Lire", por ocasião do lançamento de "Plataforma". Entre suas afirmações bombásticas figura essa frase: "A religião mais idiota do mundo é mesmo o islã".

A audiência de Houellebecq, em setembro, foi um espetáculo cultural. Toda a mídia do país acorreu ao tribunal para assistir o seu depoimento, bem como o de testemunhas célebres, como o escritor Philippe Sollers e o dramaturgo Fernando Arrabal. Outros famosos, como a escritora Régine Deforges, compareceram também ao julgamento, em solidariedade ao acusado.

Arrabal, que é um dos principais dramaturgos vivos, transformou seu testemunho numa espécie de extensão de suas próprias peças _abusadas e anarquistas. Chegou a tirar do bolso uma garrafinha de bebida e erguer um brinde ao juiz. A ironia e o humor marcaram o depoimento do réu e suas testemunhas, enquanto os membros das associações muçulmanas evocavam com gravidade as agressões de Houellebecq.

A sentença do escritor será dada em 22 de outubro. Ele corre o risco de ficar preso por dois anos ou pagar uma multa elevada. O processo é um dos casos mais graves de desafio à liberdade de expressão da literatura no país. Outros livros franceses recentes estão sendo objetos de processo movidos por associações que os acusam de pornografia e incentivo à pedofilia.

Um bom número de críticos não gosta da literatura de Houellebecq, que eles consideram um tanto sensacionalista, de inclinação polêmica, pouco elaborada em termos de escrita e com uma narrativa esquemática e passadista. Outros acham "Plataforma" um dos melhores romances franceses dos últimos anos.

Eu próprio fico com estes críticos que gostam da obra de Houellebecq. "Plataforma" é um bom romance contemporâneo, um livro que ilumina muitos aspectos da atualidade sem com isso deixar de construir um universo todo seu, específico e particular. A forma é talvez tradicionalista em demasia, passando ao largo de todos os questionamentos que o romance se colocou no último século. Mas há grande força na narração, igualmente convencional, mas que acaba se impondo ao leitor com sua crueldade metódica, sua observação desiludida e sua compulsão para desmontar consensos. Talvez isso também faça parte da arte do romance.

Em poucas linhas, "Plataforma" é uma história de amor, ou da procura do amor, ou da impossibilidade do amor. O narrador é um pequeno-burguês de cerca de 40 anos que descobre que as relações amorosas, ou as humanas em geral, entraram em falência no seu mundo. De posse de uma pequena herança, larga o emprego e embarca para a Ásia, com o intuito de fazer turismo sexual. Lá mesmo, onde pode contar com o carinho pago em dólar das massagistas orientais, ele acaba se apaixonando por uma francesa típica, uma agente de turismo. Tudo parece remetê-lo ao paraíso na Terra, reconciliando-o com o mundo, quando sua amada é morta num atentado terrorista muçulmano no bar "Crazy Lips", na Tailândia.

O narrador desabafa (a tradução brasileira deve ser melhor que a minha): "Pode-se certamente permanecer vivo estando animado simplesmente por um sentimento de vingança; muita gente viveu dessa maneira. O islã tinha acabado com minha vida, e o islã era certamente alguma coisa que eu podia odiar; nos dias seguintes (ao atentado), eu me aplicava a destilar o ódio pelos muçulmanos. Eu o consegui bastante bem, e recomecei a acompanhar as notícias internacionais. Cada vez que eu ficava sabendo que um terrorista palestino, ou uma criança palestina, ou uma mulher grávida palestina tinha sido abatida por balas na faixa da Gaza, eu sentia um sobressalto advindo do entusiasmo ao pensar que havia agora um muçulmano de menos no mundo. Sim, eu poderia viver dessa maneira".

O narrador não vai viver dessa maneira. Nas páginas derradeiras do livro, vai-se entregar à derrota e à prostração. Ele afirma: "Até o fim, eu permanecia um filho da Europa, da inquietação e da vergonha; eu não tenho nenhuma mensagem de esperança para deixar. Pelo Ocidente eu não sinto ódio, no máximo um imenso desprezo... Nós criamos um sistema no qual se tornou impossível viver; e, além do mais, nós continuamos a exportá-lo".

Naturalmente, essa última sentença foi menos comentada que a anterior. Frases como aquela, contra o islã, perpassadas do irracionalismo que só a arte permite, levaram alguns a aproximar Houellebecq do ideário da extrema direita, que aliás mandou um grupo ao seu julgamento, para protestar em seu favor. O grupo foi expulso da sala pelo juiz.

O caso Houellebecq não é parte apenas do folclore literário. Ele é o sintoma de um estado geral da sociedade francesa. A questão muçulmana divide hoje essa sociedade, de alto a baixo. A França tem milhões de muçulmanos em seu território. Eles não foram até agora suficientemente integrados, seja porque são mantidos à margem da vida econômica e política, seja porque não há como integrar uma cultura religiosa a uma cultura resolutamente laica e racionalista (a francesa) sem grande prejuízo para uma das partes.

Por enquanto, as autoridades francesas lidam com problemas civis e de organização, como institucionalizar o culto muçulmano, promover a integração nas escolas, difundir o respeito mútuo. Elas aguardam que, com o passar dos anos, a ocidentalização acabe por predominar sobre a influência religiosa. Não é certo que isso ocorra. Depende muito da capacidade do capitalismo europeu de oferecer oportunidades aos muçulmanos. E depende dos muçulmanos adotarem de fato os valores europeus.

Um brasileiro tem alguma dificuldade para compreender esse embate, que conta na verdade com vários séculos de história, ainda mais que temos poucos muçulmanos no país. O passado europeu é todo ele recheado de guerras religiosas, sobretudo entre católicos e protestantes. Hoje, quase todos os países vivem uma vasta apatia com relação às igrejas (embora não em relação a fé), mas foram as religiões que ergueram as sociedades européias, fixando credos dominantes em cada região.

No Brasil, a crise do catolicismo coincide com a disseminação de um sem número de religiões, dispersando os contendores em vários campos. Foi-se o tempo em que o candomblé ou o messianismo de Contestado punham em xeque a autoridade do Estado, ao ameaçarem a produção da identidade nacional oficial. A intolerância religiosa tem também longa história no Brasil, mas poucos se lembram. Hoje, a religiosidade no Brasil, que permanece fator importantíssimo, deixou de ser um lastro identitário da sociedade para se tornar, em sua multiplicidade, uma mola de transformação individual ou grupal, tendendo os credos todos e os brasileiros em geral a aceitarem a fórmula do liberalismo religioso norte-americano.

Na França, o islã é um mecanismo de identidade, que, nas suas várias linhagens, reúne um imenso número de pessoas _fala-se em 6 milhões. Identidade, porém, transnacional, pois a comunidade muçulmana tende a se identificar prioritariamente com os que compartilham de seus próprios valores não importa onde. E identidade extra-ocidental em pleno Ocidente, pois muita coisa nessa comunidade, desde os princípios da fé até as regras de comportamento, contraria o modelo social e cultural da França e dos países europeus.

Nada disso teria importância se o islã fosse apenas um entre tantos credos na França. Mas hoje é a segunda religião, depois do catolicismo, e toda a história da imigração muçulmana está, além disso, relacionada ao passado colonial do país, o que amplia a complexidade do problema: boa parte dos muçulmanos franceses se identifica entre si não apenas pela fé, mas também pela condição histórica de ex-colonizados.

É bastante certo que, pensando nos riscos de uma dissolução do legado histórico e cultural da França, uma parte da intelligentsia do país é antiislâmica, mas raramente se manifesta a respeito. Ou se manifesta com reticências e subterfúgios, com receio de ser associada ao ideário da extrema direita, do qual contudo essa intelligentsia não compartilha. Houellebecq é apenas a ferida exposta desse sentimento antimuçulmano pouco evidente.

Reina, de fato, uma grande hipocrisia no meio intelectual francês a respeito da questão muçulmana. Ainda está por surgir um intelectual de peso, capaz de colocar novos e honestos parâmetros à discussão, que hoje parece ter chegado a um impasse. Discussão, de mais a mais, que se ressente de toda uma série de parti-pris ideológicos, dominantes na vida do país hoje em dia, como o antiamericanismo, a antimundialização etc..

O que chamamos de "ocidentalização" não é a melhor coisa do mundo, como diz Houellebecq (e não precisaríamos ter esperado que ele dissesse), mas é preciso entender que ela não é algo de que possamos ou não dispor. É um destino histórico, relacionado ao desenvolvimento das forças produtivas, para usar o velho jargão.

Durante muito tempo, pensou-se que a dita ocidentalização seria a europeização do mundo. Os valores franceses, no caso, reinariam sublimes na comunidade dos homens. Não ocorreu bem assim. A própria Europa foi engolida pelo processo e viu suas regras civilizatórias serem devoradas por outras no período pós-colonialista.

Hoje, pensa-se que a ocidentalização é um complô de George W. Bush. Também não é. Os próprios valores americanos já estão sendo tragados pelo turbilhão da história do mundo, em novas sínteses na era pós-imperialista, que no entanto não restarão tranquilas, levando aquilo que começou bem antes da nossa memória a prosseguir seu caminho até um lugar que está muito além de nosso cálculo. A nós, simples títeres da grande história, só nos resta tornar o pequeno teatro do mundo menos injusto, doentio e enfadonho.

LÉVI STRAUSS FALA DO ISLÃ

O antropólogo Claude Lévi-Strauss é tema do mais recente volume da famosa coleção "Que Sais-Je?" (O Que Sei?), que existe há mais de 40 anos. O pequeno livro (excelente) de introdução à obra do famoso etnólogo foi escrito pela pesquisadora Catherine Clément e é o volume número 3.651 da coleção.

Saudando o lançamento, a revista "Le Nouvel Observateur" publicou uma entrevista com Lévi-Strauss, feita pelo ensaísta e escritor Didier Eribon. Indagado sobre a questão muçulmana, o antropólogo respondeu que tudo que tinha a falar a respeito já estava em "Tristes Trópicos".

Vamos, então, a esse clássico, publicado em 1955. As observações de Lévi-Strauss estão no final do livro, sobretudo no capítulo 39, chamado "Taxila", que é também o nome de uma região da Cachemira, visitada pelo antropólogo. Para quem já leu a obra, a releitura das passagens é obrigatória. Ela demonstra, por contraste, quanto falta de lucidez, coragem e inteligência no debate atual sobre o tema na França.

Transcrevo apenas um trecho, em tradução apressada e talvez com erros, pela qual peço de antemão desculpas ao leitor:

"No plano estético, o puritanismo islâmico, renunciando a abolir a sensualidade, se contentou em reduzi-la a suas formas menores: perfumes, tecidos, bordados e jardins. No plano moral, confronta-se com o mesmo equívoco de uma propagada tolerância apesar de um proselitismo cujo caráter compulsivo é evidente. De fato, o contato com os não-muçulmanos os angustia. Seu gênero de vida provinciana se perpetua sob a ameaça de outras formas de vida, mais livres e mais flexíveis que a deles e que ameaçam alterá-la pela simples contiguidade.

Antes que falar de tolerância, seria melhor dizer que esta tolerância, posto que ela existe, é uma perpétua vitória sobre eles próprios. Ao preconizá-la, o Profeta os colocou numa situação de crise permanente, resultado da contradição entre o alcance universal da revelação e a admissão da pluralidade de credos religiosos. Há aí uma situação 'paradoxal', no sentido pavloviano, geradora de uma ansiedade, de um lado, e de indulgência em relação a si mesmo, de outro, já que se crêem culpados, por causa ao islã, de superar um conflito tal. Em vão, aliás: como notava um dia diante de mim um filósofo indiano, os muçulmanos contam vantagens do fato de professarem o valor universal dos grandes princípios: liberdade, igualdade, tolerância; e eles revogam o crédito de quem pretendem, afirmando num só golpe que eles são os únicos a praticá-los".

Tomara que Lévi-Strauss não venha a ser processado!
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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